William Bonner e Renata Vasconcellos transformaram o estúdio da Globo em palanque do PT
William Bonner e Renata Vasconcellos, na sabatina eleitoral do Jornal Nacional | Foto: Montagem Revista Oeste/Divulgação Voz de carola que acabou de comungar na missa das oito, jeito de professorinha imunizada por uma vacina que expulsa a tentação de cometer o menor dos pecados veniais, Renata Vasconcellos quer saber se Jair Bolsonaro é atormentado por surtos de remorso. O inquirido, lembra a inquisidora, não se limitou a exterminar mais de 600 mil brasileiros mortos pelo vírus chinês: também imitou pessoas afetadas pela falta de ar. O acusado não vai ao menos ajoelhar-se no milho e pedir desculpas a todas e todos, ao som de dolorosas pancadas no peito? Na resposta, Bolsonaro rejeita o palavrório farisaico. Com a expressão de quem carrega nos ombros todas as dores da nação, Renata reapresenta a cobrança.Ao lado da parceira de palco, William Bonner exercita com caretas, micagens e sorrisos sarcásticos os músculos da face, emoldurada pela barba alvinegra. Caprichando na pose de Dom Pedro III de novela, ele abrira o que deveria ser uma sabatina com uma pergunta que consumiu 110 palavras. (Com 272, comparou o site Poder360, Abraham Lincoln produziu o Discurso de Gettysburg, uma das maravilhas da retórica universal.) O belicoso palavrório inaugural informou aos espectadores que não assistiriam a uma entrevista. Testemunhariam o parto de outra invenção brasileiríssima: um Pronunciamento à Nação de William Bonner, com a participação da esforçada coadjuvante.
A dupla ocupou mais de 15 minutos dos 40 reservados ao show de arrogância. Nos menos de 25 restantes, Bolsonaro suportou com serenidade a sequência de provocações, apartes, deboches e outras formas de grosseria planejada para que o alvo sucumbisse a algum ataque de nervos. [fracassaram; o que conseguiram demonstrar foi a mais completa falta de educação, interrompendo o presidente - não fosse a tolerância dos vencedores que prevaleceu com Bolsonaro, ele teria feito o que os dois mereciam: mandar aos berros que calassem a boca, pois ele estava falando,.] Tal hipótese, se consumada, ampliaria o acervo [narrativas] de provas de que Bolsonaro é golpista de nascença. O truque não funcionou. Encerrado mais um ato da ópera do jornalista malandro, consolidou-se a certeza de que, para impedir seu Grande Satã de conseguir um segundo mandato, os soldados de Lula aquartelados na Globo acham pouco assassinar a verdade. Vale rigorosamente tudo na guerra que transformou em rotina a tortura dos fatos. Vale, por exemplo, negar ao atual presidente da República deferências que contemplaram Lula e Dilma Rousseff. Na campanha eleitoral de 2006, o governante enredado no escândalo do Mensalão foi entrevistado por William Bonner e Fátima Bernardes no Palácio do Planalto. Em 2014, com Patrícia Poeta no lugar de Fátima, Dilma Rousseff recebeu no Palácio da Alvorada a dupla do Jornal Nacional. É assim que se faz com um chefe do Poder Executivo que tenta reeleger-se, recitou Bonner em ambas as ocasiões. Por que a norma deixou de vigorar só neste ano? Porque no reino dos Marinho o presidente Bolsonaro é tratado como usurpador desde o momento em que se elegeu presidente da República por vontade da maioria do eleitorado brasileiro. Bonner jura que, logo depois da reeleição de Dilma, ficou estabelecido que nenhum candidato seria entrevistado fora do estúdio no Rio, fosse qual fosse o cargo que ocupa. Como a campeã de audiência achou desnecessário noticiar a decisão, e como Michel Temer não tentou continuar no cargo em 2018, só em julho deste ano Bolsonaro soube que seria a primeira vítima da abolição da regra. Logo no começo da sabatina, também saberia que a mudança não se restringira à troca de cenário. Do primeiro ao último momento da permanência do convidado no território hostil, os anfitriões mandaram às favas todas as normas que regem entrevistas jornalísticas.O bê-á-bá da imprensa ensina que entrevista não é interrogatório; que o entrevistador pergunta e o entrevistado responde; que espectadores, ouvintes e leitores estão interessados não no que acha o entrevistador, mas no que pensa o entrevistado; que o direito de réplica não autoriza o bate-boca; que o caminho entre a primeira palavra e o ponto de interrogação deve ser percorrido em no máximo 30 segundos; que qualquer pergunta, da mais banal à especialmente delicada, precisa ser feita num tom de voz civilizado. Demitidas já no início da sabatina com Bolsonaro, essas e outras obviedades foram ressuscitadas na noite de terça-feira, quando chegou a vez de Ciro Gomes. A versão 2022 do coronel de grotão foi dispensada de recorrer ao canhão de baixarias, obscenidades e abjeções retóricas que aciona com frequência patológica desde a infância política.Ciro foi desarmado pelo tratamento pontuado por amabilidades, sorrisos, silêncios e outras demonstrações de simpatia reservadas a visitantes bem-vindos. Teve seis minutos a mais que Bolsonaro para promover o tedioso desfile de cifras e promessas tão verossímeis quanto uma cédula de três reais. Na tentativa de apresentar-se como desmatador do caminho do meio, desenhou o atalho que encurta a chegada ao penhasco.
Bonner e Renata ouviram com o coração em descompasso os ataques a Bolsonaro, e contemplaram com cara de paisagem as críticas a Lula. O espetáculo da cumplicidade explícita seria apresentado na quinta-feira, durante a sabatina com Lula. A dupla do Jornal Nacional fez o que pôde para confirmar que o estúdio da Globo virou comitê eleitoral, promovida a palanque de Lula ao longo da sabatina de araque. O que se viu foi um comício da alma viva mais pura do planeta, como garante o ex-presidiário tão orgulhoso do alentado prontuário policial que se refere a si próprio na terceira pessoa do singular.
Liberado para mentir sem apartes pelo comportamento submisso dos entrevistadores e pela suavidade das perguntas, Lula discursou como se lidasse com um bando de idiotas
O setentão engaiolado por ladroagem e lavagem de dinheiro já se comparou a Juscelino Kubitschek, Getúlio Vargas, Tiradentes e Jesus Cristo. Para fazer de conta que foi preso injustamente por juízes perversos e cruéis procuradores federais, apareceu na Globo pronto para desempenhar o papel de Nelson Mandela reencarnado. A fantasia animou o monarca de novela e a doce professorinha a enxergarem num vigarista setentão a versão nativa do estadista sul-africano.
No curto espaço ocupado por perguntas sobre a roubalheira institucionalizada pelos governos do PT, Bonner fez a ressalva bajulatória: “O senhor não deve nada à Justiça”. Renata atribuiu a Bolsonaro o nascimento do Centrão que sempre garantiu ao sabatinado o controle do Congresso. E os dois endossaram com o silêncio que consente o desfile de fake news patrocinado pelo entrevistado.
Os primeiros 40 segundos da “entrevista” do ex-presidiário ao JN representam a maior passada de pano da história do jornalismo brasileiro. pic.twitter.com/hzn146o23U
— Leandro Ruschel 🇧🇷🇺🇸🇮🇹🇩🇪 (@leandroruschel) August 26, 2022
Bonner fingiu ignorar que Lula está em liberdade não por ter sido inocentado, mas pela chicana parida pelo ministro Edson Fachin e avalizada pela maioria do Supremo Tribunal Federal. Ao inventar a Lei do CEP, que transferiu para Brasília os processos que envolveram o ex-metalúrgico que enriqueceu sem emprego fixo, o rábula de toga sentenciou à morte por prescrição de prazo decisões de nove juízes de três instâncias que condenaram Lula a uma longa temporada na cadeia pelas negociatas expostas nos casos do triplex do Guarujá e do sítio em Atibaia. Na sabatina, o termo Mensalão foi mencionado uma única vez. Petrolão, nenhuma.
Premiado pelo Jornal Nacional com um espaço de tempo de resposta superior ao concedido a Bolsonaro e Ciro, liberado para mentir sem apartes pelo comportamento submisso dos entrevistadores e pela suavidade das perguntas, Lula discursou como se lidasse com um bando de idiotas. Jogou a crise econômica no colo de Dilma, derramou-se em declarações de amor ao ex-antagonista que agora o acompanha na tentativa de voltar ao local do crime e prometeu acabar com o pântano da corrupção em que sempre nadou de braçada. O barulho das panelas foi de bom tamanho. O som seria ensurdecedor se houvesse no estúdio um detector de mentiras.
Sabe-se que Lula, ao virar dirigente sindical em 1977, abandonou ao lado do torno mecânico a honradez e qualquer espécie de escrúpulo. Soube-se agora que a dupla do Jornal Nacional, por motivos ainda insondáveis, resolveu poupar-se do sentimento da vergonha e romper relações com o jornalismo ético. As sabatinas escancararam os modos e métodos usados por gente que atira a uma lata de lixo quaisquer compromissos com a verdade.
Leia também “A urna canonizada”
Ao lado da parceira de palco, William Bonner exercita com caretas, micagens e sorrisos sarcásticos os músculos da face, emoldurada pela barba alvinegra. Caprichando na pose de Dom Pedro III de novela, ele abrira o que deveria ser uma sabatina com uma pergunta que consumiu 110 palavras. (Com 272, comparou o site Poder360, Abraham Lincoln produziu o Discurso de Gettysburg, uma das maravilhas da retórica universal.) O belicoso palavrório inaugural informou aos espectadores que não assistiriam a uma entrevista. Testemunhariam o parto de outra invenção brasileiríssima: um Pronunciamento à Nação de William Bonner, com a participação da esforçada coadjuvante.
Ciro foi desarmado pelo tratamento pontuado por amabilidades, sorrisos, silêncios e outras demonstrações de simpatia reservadas a visitantes bem-vindos. Teve seis minutos a mais que Bolsonaro para promover o tedioso desfile de cifras e promessas tão verossímeis quanto uma cédula de três reais. Na tentativa de apresentar-se como desmatador do caminho do meio, desenhou o atalho que encurta a chegada ao penhasco.
Bonner e Renata ouviram com o coração em descompasso os ataques a Bolsonaro, e contemplaram com cara de paisagem as críticas a Lula. O espetáculo da cumplicidade explícita seria apresentado na quinta-feira, durante a sabatina com Lula. A dupla do Jornal Nacional fez o que pôde para confirmar que o estúdio da Globo virou comitê eleitoral, promovida a palanque de Lula ao longo da sabatina de araque. O que se viu foi um comício da alma viva mais pura do planeta, como garante o ex-presidiário tão orgulhoso do alentado prontuário policial que se refere a si próprio na terceira pessoa do singular.
Liberado para mentir sem apartes pelo comportamento submisso dos entrevistadores e pela suavidade das perguntas, Lula discursou como se lidasse com um bando de idiotas
O setentão engaiolado por ladroagem e lavagem de dinheiro já se comparou a Juscelino Kubitschek, Getúlio Vargas, Tiradentes e Jesus Cristo. Para fazer de conta que foi preso injustamente por juízes perversos e cruéis procuradores federais, apareceu na Globo pronto para desempenhar o papel de Nelson Mandela reencarnado. A fantasia animou o monarca de novela e a doce professorinha a enxergarem num vigarista setentão a versão nativa do estadista sul-africano.
No curto espaço ocupado por perguntas sobre a roubalheira institucionalizada pelos governos do PT, Bonner fez a ressalva bajulatória: “O senhor não deve nada à Justiça”. Renata atribuiu a Bolsonaro o nascimento do Centrão que sempre garantiu ao sabatinado o controle do Congresso. E os dois endossaram com o silêncio que consente o desfile de fake news patrocinado pelo entrevistado.
Os primeiros 40 segundos da “entrevista” do ex-presidiário ao JN representam a maior passada de pano da história do jornalismo brasileiro. pic.twitter.com/hzn146o23U
— Leandro Ruschel 🇧🇷🇺🇸🇮🇹🇩🇪 (@leandroruschel) August 26, 2022
Bonner fingiu ignorar que Lula está em liberdade não por ter sido inocentado, mas pela chicana parida pelo ministro Edson Fachin e avalizada pela maioria do Supremo Tribunal Federal. Ao inventar a Lei do CEP, que transferiu para Brasília os processos que envolveram o ex-metalúrgico que enriqueceu sem emprego fixo, o rábula de toga sentenciou à morte por prescrição de prazo decisões de nove juízes de três instâncias que condenaram Lula a uma longa temporada na cadeia pelas negociatas expostas nos casos do triplex do Guarujá e do sítio em Atibaia. Na sabatina, o termo Mensalão foi mencionado uma única vez. Petrolão, nenhuma.
Premiado pelo Jornal Nacional com um espaço de tempo de resposta superior ao concedido a Bolsonaro e Ciro, liberado para mentir sem apartes pelo comportamento submisso dos entrevistadores e pela suavidade das perguntas, Lula discursou como se lidasse com um bando de idiotas. Jogou a crise econômica no colo de Dilma, derramou-se em declarações de amor ao ex-antagonista que agora o acompanha na tentativa de voltar ao local do crime e prometeu acabar com o pântano da corrupção em que sempre nadou de braçada. O barulho das panelas foi de bom tamanho. O som seria ensurdecedor se houvesse no estúdio um detector de mentiras.
Sabe-se que Lula, ao virar dirigente sindical em 1977, abandonou ao lado do torno mecânico a honradez e qualquer espécie de escrúpulo. Soube-se agora que a dupla do Jornal Nacional, por motivos ainda insondáveis, resolveu poupar-se do sentimento da vergonha e romper relações com o jornalismo ético. As sabatinas escancararam os modos e métodos usados por gente que atira a uma lata de lixo quaisquer compromissos com a verdade.
Leia também “A urna canonizada”
Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste