Cuidado: você pode ser condenado de uma hora para outra como 'fascista', 'extremista de direita/inimigo da democracia', ou até como 'genocida', se não prestar atenção no que está dizendo
Bolsonaro está a favor? Então só pode ser ruim
Cuidado, portanto: você pode ser condenado de uma hora para outra como “fascista”, “extremista de direita/inimigo da democracia”, ou até como “genocida”, se não prestar atenção no que está dizendo — e no que estão dizendo a mídia, as classes intelectuais e o circuito STF-OAB-MST-CNBB-PT-etc. É relativamente simples. Faça uma lista com as coisas que você, pessoalmente, acha corretas, lógicas e decentes; faça uma outra, ao lado, com tudo o que você acha que está errado, ou não concorda.
Em dois minutos fica claríssimo que a esquerda brasileira e mundial é totalmente contra aquilo que está na primeira lista; é totalmente a favor do que está na segunda. E as questões — são tantas, não é mesmo? — em relação às quais o cidadão não sabe, honestamente, o que é certo e o que é errado? Para obter solução imediata, basta avançar para o passo seguinte: verifique o que a esquerda está dizendo a respeito e acredite no oposto. Pronto. Operação concluída com sucesso.
A variante brasileira desse vírus apresenta um elemento a mais: Jair Bolsonaro. Por motivos que em grande parte permanecem obscuros, tudo o que tem algum ponto de contato com a imagem do presidente da República fica automaticamente mais dramático, no Brasil ou no exterior. No caso, o volume de ódio acumulado contra ele nos circuitos mentais de seus inimigos (praticamente ninguém trata Bolsonaro apenas como adversário) tornou-se tão absoluto que o presidente acabou se transformando, em si mesmo, num divisor de águas entre o bem e o mal, o certo e errado, o que pode e o que não pode. Mais ainda que os sinais de “esquerda” ou “direita” é ele, hoje, que define as coisas. Bolsonaro está a favor? Então só pode ser ruim; você é obrigado a ficar contra. Bolsonaro está contra? Então só pode ser bom; você é obrigado a ficar a favor.
Por que essa fúria toda? Uma coisa é certa: Bolsonaro disse lá atrás, assim meio por cima, que a cloroquina poderia ajudar. Ele e todos aqueles médicos — inclusive um que foi secretário de Saúde de São Paulo, no tempo em que a cloroquina ainda não era maldita, e receitou a droga para si próprio. A coisa desandou aí, e depois disso não se arrumou mais. No exterior também houve e há objeções à utilização da substância nas fases iniciais da covid. A Organização Mundial da Saúde suspendeu as pesquisas que fazia a respeito (e depois recomeçou, quando se revelou que havia utilizado referências suspeitas para decretar a suspensão), e muita gente aponta a “inexistência de provas científicas” quanto à eficácia do medicamento. Não se trata, portanto, de exclusividade brasileira. Mas em nenhum outro lugar do mundo a cloroquina foi capaz de desencadear o vendaval de paixões que causou no Brasil. Apesar do CFM e dos resultados que os médicos apresentam a seu favor, é a “droga maldita” da nossa era; os monopólios norte-americanos que controlam as redes sociais no Brasil, inclusive, banem das suas operações quem se julga no direito de falar da cloroquina sem condenar expressamente o seu uso. Em nenhum outro lugar do mundo, ao mesmo tempo, há um Bolsonaro. Pense durante 30 segundos e chegue às suas conclusões.
Outro caso realmente extraordinário é esse do “voto impresso”, ou das demandas por um sistema de votação em que os resultados possam ser verificados de forma mais completa do que hoje. Bolsonaro é a favor — ele e mais centenas de políticos, mas esqueça essas centenas de políticos e fique só nele. Pronto: o voto impresso, que historicamente era uma reivindicação de políticos como o ex-governador Leonel Brizola, e que de qualquer maneira é uma questão essencialmente técnica, virou obra de Satanás, direto na veia, de um dia para outro. Não se permite, nem mesmo, o debate sobre o tema; a simples menção de que talvez, quem sabe, eventualmente, se possa falar a respeito — só falar, não mais — já é tida como uma tentativa de golpe de Estado. Argumentar por um sistema de votação mais seguro passou a ser uma ameaça à democracia. O sistema atual, segundo a visão anti-Bolsonaro da vida, é perfeito, e não pode ser tocado; o debate livre tornou-se um retrocesso. Como a tentativa de melhorar alguma coisa pode ser um “retrocesso”? Como seria possível destruir o estado de direito com o voto impresso? E o Congresso — não estaria autorizado a aprovar uma lei nesse sentido? É insano. Mas Bolsonaro está a favor — e isso explica qualquer insânia.
Até as motos entraram na lista negra. Apareceram na mídia, dias atrás, condenações de alto a baixo ao seu uso — elas geram poluição, consomem combustíveis fósseis, matam gente. Mas por que só agora as motos viraram a máquina do mal? Porque Bolsonaro, vestindo blusão de couro (e sem máscara), participou de um desfile em seu próprio apoio, em São Paulo. É como a cloroquina e o voto impresso: caíram de pau em cima de uma máquina. (Os juízes que condenaram as motos não têm nenhuma sugestão a fazer a respeito dos 300.000 motoboys que circulam todos os dias em São Paulo para ganhar o próprio sustento.)
Naturalmente, quem sabe o que está fazendo — Lula, por exemplo, sabe muito bem — desanca Bolsonaro porque quer ir para o lugar dele no governo. Aí é perfeitamente compreensível, porque política é isso mesmo. Mas muitas pessoas (e gente bem instruída, frequentemente) se jogam no furor anti-Bolsonaro com determinação de fanático religioso; abriram mão do hábito de pensar, e passaram a agir em obediência a uma compulsão. A questão, possivelmente, diz respeito tanto à psiquiatria quanto à política.
O presidente da República, ao que parece, está servindo de polo para atrair a culpa por tudo o que há de errado no mundo e principalmente, talvez, na vida individual de cada um. Frustrações, mágoas, problemas de trabalho, dificuldades do dia a dia, conflitos pessoais, falta de dinheiro — nada disso é culpa sua, ou das suas limitações, ou das circunstâncias, ou da vida; é tudo “culpa do Bolsonaro”. Fica imensamente mais fácil pensar assim.
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J. R. Guzzo, colunista - Revista Oeste