O Estado de S.Paulo
Presidente está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados
Jair Bolsonaro bradou que o “povo está no poder” ao discursar numa
manifestação abertamente golpista em frente do QG do Exército, e se
empenha em provar o que disse. Está negociando cargos em troca de apoio
aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do
povo: os deputados. Para seus padrões, é a mais sofisticada jogada política desde que
assumiu. Tentar arrebanhar uns 200 deputados da confusa e amorfa massa
de parlamentares identificada como “Centrão”. Em busca do que até agora
dizia não ser necessário para governar, ou seja, uma base razoavelmente
ampla e coordenada na Câmara dos Deputados. [o presidente Bolsonaro comanda um partido político em processo de formação e, por óbvio, necessita de políticos eleitos, o que torna justificável eventual negociação.]
Os motivos para proceder de forma que prometeu jamais empregar – trocar
cargos por apoio político – são dos mais diversos, inclusive a vontade
pessoal de “punir” quem considera chantagista, conspirador e traidor, o
atual presidente da Câmara, de quem Bolsonaro pretende tomar parte
efetiva do controle do “Centrão”. Um dos mais relevantes motivos para a
ação do presidente, porém, é o reconhecimento tácito de que o poder do
chefe do Executivo diminuiu desde que ele assumiu.
Outro motivo é o efetivo cerco que esferas políticas e institucionais
impuseram ao presidente via STF. Bolsonaro tem razão em apontar para o
outro lado da Praça dos Três Poderes ao se dirigir por redes sociais a
apoiadores e dizer que “eles” (ministros do STF) o impedem de fazer o
que quer. Reconhece que, sem o Supremo e o Legislativo, nada vai. [O Supremo e Legislativo são necessário, o pior, que não é possível, é quando mais atrapalham do que ajudam - caso presente.]
A outra operação política sofisticada (para padrões bolsonaristas)
encabeçada pelo Planalto lembra fortemente o que se fez nos tempos da
tal “velha política”, que, teoricamente, teria deixado de existir. É
sacar praticamente a fundo perdido dos cofres públicos, investir em
grandes obras e ver no que dá. A possibilidade surgiu com a tal ajuda de emergência a governadores e
prefeitos que o próprio ministro da Economia chamou de “farra fiscal
aproveitando-se de uma crise de saúde pública”. As modalidades desse
socorro estão em negociação, mas já abriram uma avenida que permitiria
ao Executivo utilizar um “orçamento de guerra” praticamente sem limites e
sem restrições do tipo Lei de Responsabilidade Fiscal.
Claro, enquanto for tudo “temporário”, isto é, enquanto durar o estado
de calamidade. Sabe-se que, no Brasil, “temporário” em questões fiscais é
termo elástico – desonerações “temporárias” de folhas de pagamento, por
exemplo, já duram uns 10 anos. E a julgar pelo que se ouve falar no
Planalto, o “temporário” entraria pelo próximo ano (para provável
desespero do secretário do Tesouro) e abriria a janela para execução de
um plano de recuperação baseado em investimentos públicos com foco
central em infraestrutura.
É um tipo de intervenção estatal que requer centralização e coordenação e
a tarefa foi atribuída a um oficial de Estado-Maior, general Braga
Netto, ministro da Casa Civil. Talvez uma pitada de oportunismo político
(quem não tem?) tenha levado o ministro Paulo Guedes, um dedicado aluno
de Milton Friedman, a cooperar estreitamente nessa empreitada e
abraçar-se a John Maynard Keynes. Famoso pela frase, entre outras, de
que “se mudam os fatos, eu mudo de opinião” (Guedes, tal como os
clássicos Friedman e Keynes, gostaria que os políticos o ouvissem mais).
Os fatos que mudaram são de enorme magnitude. A crise do coronavírus
tornou imprevisível o tamanho da tragédia de saúde pública e econômica
no mundo e no Brasil. Ela escancarou a falta de liderança no topo do
Executivo, a profunda disfuncionalidade do sistema de governo brasileiro
e agravou a situação de um país já prisioneiro da armadilha da renda
média, com produtividade estagnada – e sem ter conseguido levar adiante o
essencial das reformas estruturantes.[os políticos sabotaram, com destaque para Maia e seu fiel escudeiro Alcolumbre.] Sim, não há manuais prontos para lidar com uma crise dessas. Que já é uma lição prática do esqueçam o que eu disse antes.
William Waack, jornalista - O Estado de S. Paulo