Bolsonaro não leva em conta que uma pessoa infectada, por se recusar a tomar a vacina, pode contaminar as outras, com consequências trágicas e irreparáveis
A ideia de que um presidente eleito por maioria pode tudo é profundamente autoritária e colide com os fundamentos do liberalismo moderno, apesar de agora ter virado moda em algumas democracias do Ocidente, inclusive a nossa. O filósofo e economista John Stuart Mill, um liberal utilitarista britânico que se inspirou nas ideias dos iluministas franceses, em meados do século XIX já classificava essa visão como uma “tirania da maioria”, expressão que causa certo espanto, porque muitos acham que maioria e democracia são exatamente a mesma coisa. Não são.
Correio Braziliense - Nas EntrelinhasSobre a Liberdade (Saraiva), um clássico da ciência política, é um libelo de Mill em defesa da liberdade de expressão e da autonomia dos cidadãos. Nascido em Londres, em 1806, destacou-se também pela defesa do civismo público e dos direitos das mulheres. Era um liberal progressista. Acabou preso por defender o direito ao aborto, a reforma agrária e a democratização da propriedade por meio de cooperativas, ideias social-liberais. Tentou definir um modelo para regular as ações entre os cidadãos, a sociedade e o Estado, que deveria ser capaz de preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a “tirania da maioria”, a partir de um conceito simples: tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros.
Mill defendia a legitimidade da mobilização da opinião pública para convencer as pessoas a não tomarem certas atitudes, mas condenava a repressão direta a ações individuais que afetam apenas a própria vida. É possível desenhar a sua “teoria do dano”: todas as pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo autônomo e, em troca, os seus membros não devem interferir nos direitos legais alheios; os danos eventualmente causados por um indivíduo a outras pessoas têm como consequência uma punição proporcional. Mill morreu em 1873, mas suas ideias sobre a liberdade individual continuam atuais.
Rebanho
No Brasil, a “teoria do dano” foi introduzida na nossa jurisprudência
no Código Civil de 1916, que estabeleceu um nexo causal entre o dano e o
fato que o produziu, e foi consagrada no artigo 403 do Código Civil de
2002. Segundo a teoria do dano direto e imediato, o Estado pode ser
processado pelos prejuízos causados aos cidadãos. Por ironia, em tempos
de pandemia e de “imunização de rebanho”, ou seja, da necessidade de
vacinação em massa para combater o novo coronavírus, um caso analisado
pelo jurista Robert Joseph Pothier, um dos autores do Código Civil
francês de 1808, é estudado ainda hoje nas escolas de direito: a
aquisição de uma vaca pestilenta, que contamina os bois do comprador,
impedindo-o de cultivar suas terras. Ciente do vício oculto, o vendedor
responde pelo perecimento da vaca como também pela morte do restante do
rebanho do comprador.
Quanto a responsabilidade do não vacinado que contaminar outro nos parece discutível, já que o outro, contaminado, é também responsável, já que existindo vacina e alguém sendo infectado se deve a que não se vacinou.
O governo também pode ser responsabilizado por não utilizar uma vacina disponível.[?] Apesar disso, cancelou o acordo feito entre o Ministério da Saúde e o Instituto Butantã, do governo de São Paulo, para a compra de 46 milhões de doses da vacina da Sinovac, que serão produzidas por aquela consagrada instituição científica, em parceria com o laboratório chinês, com previsão para estar pronta para imunização já em dezembro.
Anulou o protocolo assinado pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, com todos os governadores, para aquisição e aplicação da vacina, com o argumento absurdo de que o “povo brasileiro não será cobaia” da “vacina chinesa do João Doria”, o governador tucano de São Paulo. Alguém precisa avisar ao presidente que isso pode gerar uma enxurrada de pedidos de indenização por “dano direto e imediato” e caracterizar um “crime de responsabilidade”. [lembrando sempre que a causa das ações será o NÃO USO de um PRODUTO INEXISTENTE .]
Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense