Por interesse cívico e com o coração aos pulos, 14 anos atrás, assisti a
todos os votos, inclusive aos mais longos, através dos quais os
ministros do STF decidiram sobre o futuro da Terra Indígena Raposa/Serra
do Sol.
Na medida em que se ia revelando majoritária a opção pela
demarcação contínua das terras, minha expectativa foi sendo substituída
por um sentimento de luto que conflitava com a pieguice das
manifestações. Aquilo era puro romantismo de má qualidade.
José de Alencar fazia muito melhor. E por menos.
Em meio a tal
deserto de senso histórico e vácuo de realismo, o voto do ministro
Marco Aurélio Melo foi um oásis.
Seu longo trabalho, esparramando
argumentos sobre a natureza dos fatos e sobre os elementos jurídicos a
eles aplicáveis, foi tão consistente e extenso quanto inútil. Mas o
ministro, embora ciente de sua esterilidade, não titubeou em produzir o
arrazoado para desnudar os equívocos e os lirismos que caracterizaram a
maior parte das manifestações anteriores. Entre elas, obviamente, a
contida no voto do relator, o aveludado poeta, inspirado pelas Musas
sergipanas, ministro Ayres Britto.
Com esse
desalento inconformado que se foi tornando habitual ante as decisões do
STF pós petismo, presenciei os momentos finais da sessão. Quando os
“capinhas” se preparavam para arredar as poltronas dando saída aos
ministros, um derradeiro episódio religou os holofotes, favorecendo a
compreensão do que ocorrera naqueles sucessivos dias de deliberação.
Alguém, não lembro quem, perguntou em quanto tempo promover a retirada
dos não-indígenas. (Não-indígenas integravam uma categoria antropológica
muito mal vista por ali). Em quanto tempo, excelências?
Entreolharam-se
os senhores ministros. Aproximaram-se inutilmente do pelourinho de onde
podiam arfar seus argumentos os advogados dos não-indígenas. Queriam
prazo. A decisão veio consensual: “a Corte não dá prazos”. Emite
determinações para execução imediata.
Ela, a Corte, não esquenta a cuca
com o que acontece na ponta dos fatos a partir de suas decisões. São
mesquinharias que causam enfado à Corte. Vamos para casa tomar um
uísque. Creiam, foi exatamente isso que aconteceu.
Lá no norte
do país, cidadãos brasileiros recebiam pela tevê, viva voz e viva
imagem, a notícia de sua expulsão imediata, emitida entre bocejos pelos
senhores da Corte que não dá prazos. Ao lixo os títulos de propriedade
legítimos e os longos anos de árduo trabalho familiar nas terras que a
União lhes vendeu.
Ao lixo suas lavouras plantadas e seus rebanhos no
pasto.
Ponham-se na rua, todos, com suas famílias, moradias, máquinas e
bens! A Corte decidiu e a Corte, visivelmente, está cansada.
Isto é que é
trabalho duro! Moleza é plantar arroz no trópico e discutir
antropologia com padres que não evangelizam os índios e que
desevangelizam os não-índios.
Pois foi
exatamente então que se esclareceu minha compreensão sobre o que acabava
de acontecer. Foi a Corte. Especialmente a Corte republicana
brasileira.
O que ela menos quer é contato com a arraia miúda, suas mãos
calejadas e seus problemas.
A decisão do STF sobre a demarcação
contínua da reserva Raposa/Serra do Sol e a retirada imediata dos
não-índios foi apenas uma outra face do mesmo problema cortesão que leva
o STF, passados 14 anos, a deliberar a respeito do fim do domínio
brasileiro sobre o território nacional no caso do marco temporal.
Uma
proeza cuja concretização exige ladear a Constituição, atropelar o
Congresso e, claro, curvar-se às suas altezas da União Europeia.
Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.