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sábado, 27 de janeiro de 2018

Uma lei só para Lula?

Só pode ser piada de mau gosto a suposta disposição de convocação do plenário do STF para revisão da possibilidade de execução de pena após condenação em segunda instância

Certamente só pode ser uma piada de mau gosto a história, ventilada nos últimos dias, a respeito da suposta disposição da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, de convocar o mais rápido possível o plenário da Suprema Corte para uma revisão da possibilidade de execução de pena após condenação em segunda instância. Se isso ocorresse, o STF estaria abandonando sua função de corte constitucional – responsável por aplicar a Constituição e assegurar o equilíbrio de todo o sistema de Justiça – para se transformar em casa de benemerência para o sr. Lula da Silva. [se tratando dessa excelentíssima senhora, tudo é válido para se manter em evidência - percebam que bastou a piada de mau gosto ser ventilada e o nome dela já está no noticiário.]

Em 2016, o STF firmou jurisprudência no sentido de que, após a condenação penal em segunda instância, é possível dar início ao cumprimento da pena. Restabelecia-se, assim, o entendimento de que não é necessário esgotar todos os recursos para que o réu possa ser preso. Na ocasião, a maioria dos ministros entendeu que a prisão após a condenação em segunda instância não fere o princípio da presunção da inocência, já que, nesses casos, a presunção foi esgotada, juntamente com o exame dos fatos que configuram a culpa. Recursos posteriores referem-se exclusivamente a questões de direito.

A decisão do STF de permitir a prisão após condenação em segunda instância foi um passo importante para combater a lentidão da Justiça, que tanto alimenta a sensação de impunidade no País. Com frequência, os vários recursos previstos no Código de Processo Penal eram utilizados simplesmente para protelar o início do cumprimento da pena. O réu que podia contar com bons advogados conseguia alguns anos a mais em liberdade, mesmo que um órgão colegiado já o tivesse condenado. Naturalmente, a nova posição do STF sobre o início do cumprimento da pena enfrentou resistências. Muita gente que estava conseguindo retardar sua ida à cadeia por meio de habilidosos recursos teve de acertar, mais cedo do que esperava, as suas contas com a Justiça. No entanto, mesmo com todos esses protestos, a Suprema Corte manteve-se firme em sua jurisprudência.
De lá para cá, o assunto de uma eventual revisão da prisão após a condenação em segunda instância veio à baila algumas vezes, quase sempre estimulado por gente interessada numa Justiça mais lenta e menos efetiva. De toda forma, a Suprema Corte não voltou ao tema. Só faltaria que agora, sem qualquer motivo razoável para rever o tema, o STF achasse que lhe cabe proteger o sr. Lula da Silva das consequências da lei e se dispusesse a criar uma jurisprudência específica para o cacique petista. É preciso ter claro que qualquer facilidade para o sr. Lula da Silva seria um tremendo desrespeito ao princípio, essencial na República, de que todos são iguais perante a lei.

Seria um absurdo achar que a condenação em segunda instância do sr. Lula da Silva por corrupção passiva e lavagem de dinheiro possa ser motivo para a Suprema Corte reavaliar o seu posicionamento sobre o início da pena. A lei deve valer para todos e, por consequência, não devem ser feitas leis ad hoc, para casos específicos. Esse tipo de manobra é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

A história nacional coleciona alguns desses casos esdrúxulos, nos quais o Direito foi mudado especificamente para atender ao interesse de algum poderoso da ocasião. Ficou famosa, por exemplo, a Lei Teresoca (Decreto-Lei 4.737, de 1942), criada sob medida por Getúlio Vargas para que Assis Chateaubriand obtivesse a guarda da filha Teresa. O Brasil dispensa uma lei ou uma jurisprudência Lulinha. Que as Leis Teresocas fiquem no passado e na história, para que a lição do que não fazer esteja sempre presente.

É, portanto, ultrajante ao bom nome do Supremo dar a entender que ele poderia se prestar a esse tipo de serviço, como se a presidente da Suprema Corte estivesse agora a se preocupar com os dias futuros de um cidadão condenado em segunda instância por usar seu cargo público para obter favores pessoais. A função do STF é exatamente assegurar que essas manobras não ocorram e que a Constituição valha para todos, sem exceções.[caso ocorra essa imoral convocação, cabe aos ministros do Supremo repudiarem veementemente tão imoral agressão a sua condição de Corte Constitucional e ao mesmo tempo mostrar a sua atual presidente que o principio a LEI É PARA TODOS, não está em jogo e nem poderia; temos confiança que pelo menos 6 ministros do STF votarão contra a alteração desejada.

Quem sabe a simples convocação para discussão de uma proposta que avilta a Supremo Corte, provoque o repúdio de todos os ministros = 10 = haja vista, que a posição da ministra presidente, com a esdrúxula convocação, já é conhecida, além de seu voto, pela maioria total a favor da manutenção da dignidade do Supremo, será absolutamente sem valia.]  

Editorial - O Estado de S. Paulo 
 

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

A banalidade do mal

Biografia de chefe de polícia de Vargas demole o mito do carrasco poderoso e expõe um tipo mais perturbador: o homem que cumpre ordens cegamente

 

O título com forte apelo comercial faria sentido se o brasilianista americano R.S. Rose tivesse confirmado, nas pesquisas que lhe permitiram reconstituir a saga de Filinto Müller, o personagem sombrio, brutal e desumano desenhado por desafetos extraordinariamente inventivos e jornalistas sem compromisso com os fatos. A honestidade intelectual do autor resultou numa biografia que exuma não O Homem Mais Perigoso do País (The Most Dangerous Man in the Country, no original em inglês), mas “O Temido Chefe de Polícia da Ditadura Vargas”, como informa já na capa o subtítulo acrescentado pela editora. Nada disso reduz a relevância da obra: o resgate do Filinto Müller de verdade oferece aos leitores a contemplação, em toda a sua perturbadora pequenez, de uma espécie humana que se reproduz com impressionante intensidade nas ditaduras e tem por hábitat as cercanias dos cativeiros: o homem que executa as ordens que vêm de cima. Quaisquer ordens. Sem jamais contestá-las, sem remorsos, sem crises de consciência, sem hesitação.

Até agora, o retrato oficial de Filinto Müller foi o desenhado a quatro mãos por Assis Chateaubriand, um barão da imprensa que ignorava fronteiras éticas, e David Nasser, um ficcionista fantasiado de repórter. [David Nasser é autor do livro FALTA ALGUÉM EM NUREMBERG; 
clicando no link acima o leitor terá oportunidade de ler na íntegra a obra de Nasser e fazer sua própria avaliação.] 
 
Rompido com Getúlio Vargas, Chatô escalou o jornalista de confiança para vingar-se do chefe de polícia com quem antipatizava. Para associar o inimigo à Alemanha hitlerista, Nasser localizou na família do alvo um segundo sobrenome teutônico e criou o supervilão Filinto Strubling Müller, desancado impiedosamente na série de reportagens publicadas na revista O Cruzeiro que depois seriam reunidas no livro Falta Alguém em Nuremberg. O Müller criado por Nasser tornou-se o único integrante do movimento tenentista expulso da Coluna Prestes, “por traição”. Teria sido dele a ideia de deportar Olga Benário Prestes. [Olga Benário Prestes além de conspirar junto com Prestes e outros comunistas para transformar o Brasil em mais um satélite soviético, veio para o Brasil fugindo da Justiça alemã que a condenou pela prática de vários atos terroristas na Alemanha - condenação proferida bem antes de Hitler se tornar chanceler do Terceiro Reich. 
Tanto que sua deportação além de atender justa solicitação do Governo alemão, teve também fundamentação nos atos praticados por Olga aqui no Brasil e que  tornaram nociva sua permanência no Brasil.
Não houve, ao deportá-la nenhuma atitude perseguidora por parte do governo Vargas.]  

Por sugestão de Chatô, Nasser qualificou de “nazista” o sorriso de Müller. Era com esse sorriso que o esbirro de Vargas teria acompanhado com entusiasmo e prazer as sessões de tortura que ocorreram diariamente enquanto durou o regime de exceção. Hábil inventor de tipos, Nasser fez de Müller uma versão piorada do alemão Heinrich Himmler. Na biografia publicada por Rose, as fantasias são demolidas por fatos. Müller não foi expulso da Coluna Prestes pela simples razão de que a coluna não existia quando o tenente mato-grossense desistiu de derrubar a bala o governo Artur Bernardes e se exilou na Argentina. 

É verdade que o Estado Novo institucionalizou a tortura, destinada a quebrar o físico e a alma dos participantes da rebelião comunista de 1935 e do levante integralista de 1938. Mas a CPI criada no Congresso para apurar as violências nos porões da polícia política terminou sem que nenhum depoente denunciasse a participação de Müller em alguma sessão de tortura, como carrasco ou espectador. Sobram evidências de que o biografado sabia que os métodos usados no interrogatório de quem guardava informações relevantes incluíam invariavelmente agressões selvagens. Porém as atrocidades só começavam depois que o chefe encerrava o expediente e ia para casa jantar em companhia da família. 

Rose também demonstra que, por mais poderoso que fosse, um chefe de polícia jamais se atreveria a ordenar deportações. No Estado Novo, tal atribuição era privativa do ditador. Foi Getúlio, portanto, quem determinou a viagem que levaria a mulher de Prestes à Alemanha e ao campo de concentração onde seria assassinada. Coube a Müller desincumbir-se de mais uma missão com a habitual eficiência.

Sempre que confrontado com perguntas sobre a face escura da era Vargas, Müller repetia que apenas cumprira ordens. Quem fez da mesma frase um mantra foi Adolf Eichmann, o carrasco alemão sequestrado na Argentina em maio de 1960, julgado no ano seguinte por um tribunal israelense que o condenou à morte e executado em 1962. “Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis”, resumiu Hannah Arendt no extraordinário Eichmann em Jerusalém — Um Relato sobre a Banalidade do Mal. “Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia a ordens, ele também obedecia à lei.” Todas as ditaduras são igualmente repulsivas, mas há um cósmico buraco negro a separar o III Reich do Estado Novo. Nem mesmo David Nasser acreditava que o banco dos réus de Nuremberg só ficaria completo se Müller estivesse lá. Não há semelhanças notáveis entre Müller e Himmler. Mas há visíveis traços comuns ao chefe de polícia de Vargas e Adolf Eichmann. Fosse qual fosse a ideologia do regime a que servissem, ambos fariam com aplicação e eficácia o serviço determinado pelos superiores hierárquicos.

Depois de duas derrotas na eleição para o governo estadual, Müller conformou-se com o papel de senador vitalício por Mato Grosso. Foi líder do governo JK, aliou-se aos militares em março de 1964, encontrando em Emilio Médici o presidente que se juntaria a Getúlio no altar dos seus santos particulares e encerraria a orfandade política decretada pelo suicídio. Tinha 73 anos quando decolou rumo a Paris, em 1973, acompanhado pela mulher, Consuelo, e pelo neto, Pedro. A poucos minutos do Aeroporto de Orly, um incêndio provocou um dos mais terríveis acidentes da aviação brasileira. A presença de várias celebridades a bordo obrigou Müller a socializar o espaço jornalístico reservado à tragédia. Ele não foi o número 1 sequer no noticiário que registrou a morte do líder no Senado do governo Médici — tão indissociável da tortura de presos políticos quanto a ditadura de Vargas.

Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2017, edição nº 2564