J. R. Guzzo
Comissão é uma trapaça que se manterá distante da principal questão: a inépcia e a malversação de dinheiro do erário por parte dos que foram encarregados de tratar da Covid-19
Governadores, prefeitos, seus familiares, os amigos e os amigos dos amigos não contaram apenas com essa decisão sagrada do STF, e com o apoio quase integral das “instituições”, do Brasil “que pensa” e dos meios de comunicação. Mais que isso, tiveram a bênção do “estado de emergência”, um pé-de-cabra legal que permitiu aos gestores locais gastarem dinheiro público sem controle nenhum: sem concorrência pública, sem licitação, sem necessidade de prestar conta.
Se já é uma dificuldade extrema segurar a roubalheira com todas as regras e contrarregras que existem por aí, imagine-se, então, o que acontece quando praticamente não há controle algum. Mais: ninguém aqui está falando de uns trocados. As “autoridades locais” receberam ao longo do último ano, em verbas federais, cerca de R$60 bilhões para cuidar da epidemia — dinheiro que o Tesouro Nacional não tem, mas que sempre é fácil tirar dos impostos que a população paga todos os dias, a cada vez que acende a luz ou põe um litro de combustível no tanque. Hoje em dia, com essa história de se dizer um bilhão aqui, um bilhão ali, pode parecer banal, mas 60 bi é uma imensidão em termos de dinheiro. Para se ter um começo de ideia: o total dos gastos federais com a educação, em um ano, ficou em R$40 bilhões. A Covid-19 comeu uma vez e meia isso aí.
Aparecem agora os heróis da mídia no papel de resistentes ao “fascismo”
Para completar o seu sonho de consumo, as “autoridades locais” contaram com a ajuda vital do Ministério Público, da Polícia Federal e da mídia em geral, que estão de olhos praticamente fechados há mais de um ano, quando se trata de corrupção na Covid-19. Há exceções, claro: o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, foi posto para fora do palácio em agosto do ano passado, destituído e até preso, no meio de uma tempestade de acusações de roubo na gestão da epidemia. Mas Witzel, claramente, é um caso fora da curva. Num Estado que já teve um colosso na história da corrupção universal como o ex-governador Sergio Cabral, com mais de 200 anos de cadeia nas costas por roubar de tudo (para não falar de Anthony Garotinho e sua mulher Rosinha), conseguir ser demitido do governo, como ele foi, é realmente qualquer coisa de paranormal. Na vida mais normal, a ‘governadorzada’ e a ‘prefeitada’ deitaram e rolaram, sem que as denúncias apresentadas contra eles tenham atraído a real atenção do MP, da PF ou da imprensa; saiu alguma coisinha aqui, outra ali, mas absolutamente nada que lembrasse, nem de longe, a fúria moral de todos quando os acusados fazem parte da sua lista negra.
Diante de mais essa calamidade, o Senado faz o quê? Faz exatamente o que as “instituições democráticas” do Brasil sempre fizeram: enterra o problema real, salva os culpados e dá às piores figuras, mais uma vez, a oportunidade de virarem heróis da mídia no papel de resistentes ao “fascismo”, à “direita” e ao “genocídio”. A questão, se querem mesmo investigar alguém, é a inépcia e a malversação de dinheiro do Erário por parte dos que foram encarregados de tratar da Covid-19 — as “autoridades locais.” Em vez disso, investigam o governo federal — que não tem quem o defenda, dentro e fora do mundo político, e vai ficar apanhando quieto até os arquiduques da “Resistência” tirarem tudo o que podem da CPI e partirem para outra. É desastre com perda total.
Como acontece quase sempre na vida pública brasileira, a trapaça das “investigações” se repete como farsa, ou como espetáculo de humor macabro.
Nada revela tão bem o deboche de tudo isso quanto a lista de membros da CPI. O presidente é um senador do Amazonas envolvido até o talo na confusão: sua própria mulher, além de irmãos, já foram presos por ladroagem na área da saúde — da saúde, justamente, dentro de um escândalo que se arrasta há cinco anos no Estado e na capital, Manaus, e é objeto das operações Maus Caminhos e Cash Back, da Policia Federal. O representante titular do PT é o senador Humberto Costa — ninguém menos que o “Drácula” da lista de políticos comprados pela construtora Odebrecht, codinome que recebeu por seu envolvimento junto à máfia que roubava sangue da rede pública de hospitais quando ele era ministro da Saúde de Lula. Há outra estrela da relação de salteadores da Odebrecht: o “Whiskey”, apelido do senador Jader Barbalho, do Pará. (Deu para entender a presença de Amazonas e Pará na CPI? Pois então: são exatamente os dois Estados, fora o Rio, onde mais se roubou neste ano de Covid-19.)