Anos atrás, repórteres não se atreveriam a perguntar a um ministro do STF quem paga a viagem dele ao exterior
O comentário é uma óbvia contradição. Se estivesse interessado em trocar notícia por verba, por que O GLOBO faria críticas à gestão municipal, fonte de muito dinheiro de propaganda? Seria o inverso, não é mesmo? Deveria bajular não apenas a prefeitura Crivella, como o presidente Bolsonaro, ambos donos de gordas verbas publicitárias. Citamos Bolsonaro porque ele também tem se dedicado a atacar veículos diversos, incluindo todos do Grupo Globo e mais a “Folha”, alvos especiais.
De espírito autoritário, muitos líderes políticos não sabem o que é democracia e seu corolário, a imprensa livre. Podemos incluir aqui Lula e o pessoal do PT. Não esqueçamos: as primeiras palavras de Lula ao deixar a prisão foram para atacar a TV Globo.
Assim, vamos explicar, mais uma vez. Na verdade, não se pode falar “a” imprensa. Há muita diversificação entre os veículos, sendo a principal divisão entre os independentes e os chapa-branca. Estes são aqueles que só existem para fazer propaganda e/ou defender os interesses do governo, de políticos, de igrejas e de negócios setoriais. Vivem de verbas públicas ou de dinheiro colocado pelo patrocinador exclusivo. A imprensa independente é aquela que vive da notícia e, no caso da TV, também do entretenimento. Vive no duplo sentido: tem que ser reconhecida como tal pelo público (credibilidade) e tem de ganhar dinheiro com venda em bancas, de assinaturas e de publicidade. A independência é editorial e econômica ao mesmo tempo.
Aqui, essa imprensa independente amadureceu ao longo da vida democrática pós-1985.Tem várias características, algumas boas, outras ruins, mas há um ponto essencial. A imprensa brasileira não é bem agressiva — como a qualificou uma vez o ministro Gilmar Mendes. É atrevida. Nem sempre foi. Tornou-se atrevida, especialmente na política, em tempos relativamente recentes.
Também não era um vício apenas nacional. Na Washington de John Kennedy, todo mundo sabia que o presidente gostava muito de mulheres e que as recebia na piscina da Casa Branca quando Jacqueline não estava por perto. Jornalistas sabiam, alguns até participavam das farras — e não publicavam nada. Ao contrário, publicava-se que se tratava de um feliz casal presidencial.
Em Brasília dos anos 80 e 90, os jornalistas também sabiam das mazelas pessoais (amantes, rolos) e, digamos, profissionais dos políticos, tais como negócios paralelos. Corrupção. Não lhes ocorria publicar, mesmo porque muitos jornalistas desfrutavam de vantagens indevidas, como empregos no Congresso, em autarquias e estatais. Além de financiamentos especiais em bancos públicos. A mudança forte começou a aparecer na passagem dos anos 80 para os 90. Repórteres mais novos começaram a publicar os privilégios, os bastidores, inclusive das casernas — ou seja, as informações não oficiais, não autorizadas, mas obtidas por apuração e investigação independente.
Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
Coluna publicada em O Globo - Economia 5 de dezembro de 2019