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quarta-feira, 3 de maio de 2023

O Estado e seus amantes - Percival Puggina

         Que muitas pessoas amem o Estado é natural, pois é uma forma de amor próprio. Os mais empolgados encarnam o objeto de seu amor e, amando o Estado, amam a si mesmos. 
Os demais possuídos por essa volúpia pensam que o Estado lhes pertence e o amam como a um bem próprio.  
Os dois grupos, por suas paixões, ferem o funcionamento das instituições.
 
A tragédia central dessa relação não é, de modo algum, o patrimonialismo nem a corrupção, nem a inanição fora do agasalho do Estado
A tragédia central é o controle da manifestação das opiniões, notadamente das opiniões políticas. 
Esse é sonho de consumo de quem, funcionalmente, se confunde e se funde com o Estado. Controlar o que os adversários podem dizer até a extinção total de seu sentido é o mecanismo preferido dos totalitarismos para se eternizarem no poder. Não é à toa que ditadura – usura do poder – rima com censura.
 
As ideias acima são pensamentos da noite de ontem (02/05) enquanto via defensores e opositores se digladiarem em prolongado contraditório. Os que a defendiam, não por acaso alinhados com a esquerda, viviam algo que para eles é o inferno da comunicação: não terem palavra ou chavão que lhes permitam controlar o discurso. 
Afinal, censura é censura e chamar uma lei de censura de “lei da liberdade, transparência e responsabilidade” dá um nó na língua e outro no cérebro. Sua rota de fuga era defender o combate à criminalidade: “Tem gente morrendo por falta dessa lei!”, diziam a todo instante, enquanto as máscaras caíam e eram pisoteadas no tapete do plenário.
 
Combate ao crime? Por parte de quem? Da turma do desencarceramento, do prender não resolve, do helicóptero devolvido ao André do Rap, da impunibilidade do “di menor”, do desarmamento, da liberação das drogas, do “polícia não sobe morro”, dos processos anulados por erro de CEP?  
Desde quando o combate ao crime virou prioridade de Estado num governo de esquerda?  
Quando foi que o topo do poder judiciário pisou no acelerador do combate à criminalidade objetiva com a energia e o dinamismo equivalentes aos usados para pôr tornezeleiras nas tias do zap e aos subjetivos “crimes” de fake news e discursos de ódio?  
Como podem punir o Google por defender editorialmente seus interesses “afetando a independência do Parlamento” e atravessar a rua e ir ao Congresso para ... fazer o quê, mesmo? 
E não perceberam a mesma conduta no governo afetar a independência do Parlamento quando compra votos com emendas para tentar aprovar a Lei da Censura?

O que a sociedade tem visto, com louvores de muitos, sim, é a censura objetiva. Primeiro, já de longa data, como prática de direito uti possidetis esquerdista nos relevantes espaços da Educação e da Cultura, portas cerradas a toda divergência conservadora ou liberal, imediatamente rotulada de fascista e de extrema-direita. Depois, na diversidade de modos e casos testemunhados durante a recente campanha eleitoral.

Ontem, quiseram meus sentidos discernir um grito de independência ecoar no plenário da Câmara dos Deputados. Desconheço sua extensão, mas percebi no bulício do plenário um coro de fundo a entoar “Não passarão!”, palavras nem sempre decisivas, mas marcantes em momentos significativos da história do último século.

Espero que também as plataformas aprendam algo com a censura que quer agir contra elas. Algumas, com claro viés progressista, censuram com habitualidade seus usuários conservadores reduzindo-lhes a propagação ou jogando-os para detrás das cortinas do shadowban.

O PL 2630/2020 é PL da Censura, sim. Leis contra o crime são leis penais, de tipificação precisa, sem subjetividade e sem “veja bem, doutor”. Sua eficácia depende menos do rigor e muito mais da efetiva relação crime/aplicação da pena. 

O resto é censura, eterna volúpia dos amantes do Estado.  

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.


quinta-feira, 28 de maio de 2020

Imprensa marrom - Carlos Alberto Sardenberg

Antigamente, era mais fácil. Havia muita diversificação entre os veículos de imprensa, mas com uma divisão principal: os independentes e os chapa-branca. Aliás, esta última expressão é ela mesma do tempo antigo. Hoje, as autoridades circulam em carros com placas de bronzeevoluíram, não é mesmo?  – ou com chapas frias. Sabem como é, o povo hoje sabe com quem está falando e muitas vezes não gosta.

[a imprensa livre, independente, investigativa é e sempre será necessária.
Se torna inconveniente, abusiva mesmo, que passa a ser repetitiva, cansativa, na tentativa - sempre vã - de impor o que pensa ser correto, de apresentar sua versão, sua interpretação, como fato.
Se necessário, procede até o fatiamento da noticia, esquartejamento mesmo, para enfiar goela abaixo, trecho por trecho, o que lhe convém.
Só que o povo, especialmente o brasileiro, não aceita - pode não saber votar, votando em coisas como lula e dilma - mas não aceita versões. Vota mal, mas interpreta fatos de versões.]

Mas voltemos ao que interessa, a imprensa. Os veículos chapa-branca eram aqueles que só existiam para fazer propaganda e/ou defender os interesses do governo, de políticos, de igrejas e de negócios setoriais. Viviam de verbas públicas ou de dinheiro colocado pelo patrocinador. A imprensa independente era aquela que vivia da notícia e, no caso da tevê, do entretenimento. Vivia no duplo sentido: tinha que ser reconhecida como tal pelo público (credibilidade) e tinha de ganhar dinheiro com venda em bancas, de assinaturas e de publicidade. A independência deveria ser editorial e econômica ao mesmo tempo. Aqui, essa imprensa independente amadureceu ao longo da vida democrática pós-1985.

Tem várias características, algumas boas, outras ruins, mas há um ponto essencial. A imprensa brasileira não é bem agressiva, é atrevida. Nem sempre foi. Tornou-se atrevida, especialmente a política,  em tempos relativamente recentes. Por exemplo: alguns anos atrás, repórteres políticos não se atreveriam a perguntar ao presidente se ele queria interferir na Polícia Federal ou melar uma investigação sobre atividades de seus filhos. Na verdade, não é que não se atreveriam, nem lhes ocorria perguntar esse tipo de coisa. Parecia normal que autoridades tivessem privilégios, incluindo as famosas mordomias.

Também não era um vício apenas nacional. Na Washington de John Kennedy, todo mundo sabia que o presidente gostava muito de mulheres e que as recebia na piscina da Casa Branca quando Jacqueline não estava por perto. Jornalistas sabiam, alguns até participavam das farras – e não publicavam nada. Ao contrário, publicava-se que se tratava de um feliz casal presidencial. Em Brasília dos anos 80 e 90, os jornalistas também sabiam das mazelas pessoais (amantes, rolos) e, digamos, profissionais dos políticos, tais como negócios paralelos. Não lhes ocorria publicar, mesmo porque muitos jornalistas desfrutavam de vantagens indevidas, como empregos no Congresso, em autarquias e estatais. Além de financiamentos especiais em bancos públicos.

A mudança forte começou a aparecer na passagem dos anos 80 para os 90. Repórteres mais novos começaram a publicar os privilégios, os bastidores, inclusive das casernas – ou seja, as informações não oficiais, não autorizadas, mas obtidas por apuração e investigação independente.
Ao mesmo tempo, desenvolveu-se o jornalismo opinativo – outro que tanto incomoda as autoridades. Para o presidente Bolsonaro e seus seguidores, ou a imprensa é a favor ou é mentirosa, canalha, lixo e tantas outras ofensas. Mas na democracia, quem decide se uma imprensa é boa ou não é o público, com sua audiência, sua leitura, seu respeito.

Essa imprensa está aí. Ainda bem. As redes sociais, claro, são uma novidade. Mas a divisão entre independência e militância de qualquer tipo é a mesma que se via na imprensa tradicional. Então, os principais veículos independentes, aqui e no mundo, estão migrando para as redes sociais. Continuam sendo a representação da imprensa livre e responsável.  Mas as redes também tornaram mais fácil o surgimento dos veículos “fake news”, que bem poderia ser a nova designação para imprensa marrom, aquela sem nenhum escrúpulo. Do mesmo modo que antes não se poderia fechar a imprensa para bloquear o lado marrom, também hoje não se pode bloquear as redes para afastar os provedores de fake news, ofensas e ameaças. Mas, atenção, liberdade de expressão não é um salvo conduto. Não pode haver censura prévia. Mas a publicação e seus autores podem ser processados, na devida forma da lei.

Carlos Alberto Sardenberg, jornalista


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E HIPOCRISIA - Percival Puggina


Tenho assistido eloquentes defesas da liberdade de expressão em meios de comunicação. E isso é muito bom. Mas seria melhor ainda se fossem menos seletivas
Citarei dois exemplos que acompanhei de perto.

1º) O filme “1964, o Brasil entre armas e livros”, assinado pelo Brasil Paralelo, teve estreia nacional no dia 31 de março de 2019 em dez salas da rede Cinemark. Estreou num dia e “desestreou” no outro, com a rede suspendendo as exibições diante dos protestos da esquerda, que não admite, sobre os fatos de 1964, qualquer contestação ou acréscimo à sua delirante narrativa, recheada de impossíveis heróis comunistas amantes da democracia e da liberdade.

Não li nesses meios de comunicação, ditos zelosos defensores da liberdade, dois parágrafos críticos à abrupta decisão da rede Cinemark. As condenações dirigiam-se ao filme. Seus acusadores fazem questão de manter no desconhecimento inclusive os abundantes testemunhos de historiadores de esquerda e de protagonistas da luta armada, que recusam a farsa contestada no filme. “1964, o Brasil entre armas e livros”, que inclui testemunho meu, tem aquela honestidade intelectual carente em seus críticos. Há nele depoimentos que chamam golpe de golpe, ditadura de ditadura e tortura de tortura. Mas chamam terrorismo de terrorismo, comunismo de comunismo, e documentam a influência da Guerra Fria nos acontecimentos da América Latina naquele período. Fora da rede comercial, o filme alcançou em poucos dias 5 milhões de visualizações no YouTube!

2º) A série “Brasil: a última Cruzada é outra excelente realização do Brasil Paralelo. Trata-se de um relato focando seis períodos marcantes de nossa história, sobre os quais colhe opiniões de intelectuais e historiadores. É, também, uma narrativa divergente da que recheia os conteúdos ministrados à nação em salas de aula e em tantos livros didáticos. Em ocultar problemas (qual país não os tem?), “Brasil: a última Cruzada” acende luzes sobre méritos extraordinários, fatos notáveis, personagens fascinantes, suscitando reações emocionadas em milhões de brasileiros que, nesse novo conhecimento, mantido oculto pelos lixeiros da história, encontram consistentes motivos para amar o Brasil e respeitar sua dignidade nacional. “Ninguém ama o que não conhece”, ouvi certa vez para nunca mais esquecer. Há uma história do Brasil mantida no desconhecimento. E há um Brasil mal amado por causa disso.

Pois bem, quando a TV Escola firmou contrato para exibir gratuitamente a série do Brasil Paralelo, qual a reação dos pretensos defensores da liberdade de expressão? Críticas severas à falta de contraditório, como se o filme não fosse o próprio contraditório às manipuladas “narrativas” dominantes e à sandice representada por uma anacrônica leitura marxista da realidade nacional ao longo dos séculos... No Brasil pode e pega bem.
Hipocrisia é, sim, uma palavra perfeitamente aplicável ao que estamos vendo no Brasil que descobre onde não encontrará, jamais, a verdade que liberta.


Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Eles não gostam da imprensa livre - Carlos Alberto Sardenberg

Anos atrás, repórteres não se atreveriam a perguntar a um ministro do STF quem paga a viagem dele ao exterior

‘O GLOBO não é um jornal, é um panfleto político, sempre interessado em trocar notícia por verba publicitária” — disse o prefeito Marcelo Crivella, para justificar a exclusão de repórteres do GLOBO de uma coletiva.

O comentário é uma óbvia contradição. Se estivesse interessado em trocar notícia por verba, por que O GLOBO faria críticas à gestão municipal, fonte de muito dinheiro de propaganda? Seria o inverso, não é mesmo? Deveria bajular não apenas a prefeitura Crivella, como o presidente Bolsonaro, ambos donos de gordas verbas publicitárias.  Citamos Bolsonaro porque ele também tem se dedicado a atacar veículos diversos, incluindo todos do Grupo Globo e mais a “Folha”, alvos especiais.
De espírito autoritário, muitos líderes políticos não sabem o que é democracia e seu corolário, a imprensa livre. Podemos incluir aqui Lula e o pessoal do PT. Não esqueçamos: as primeiras palavras de Lula ao deixar a prisão foram para atacar a TV Globo

Assim, vamos explicar, mais uma vez. Na verdade, não se pode falar “a” imprensa. Há muita diversificação entre os veículos, sendo a principal divisão entre os independentes e os chapa-branca. Estes são aqueles que só existem para fazer propaganda e/ou defender os interesses do governo, de políticos, de igrejas e de negócios setoriais. Vivem de verbas públicas ou de dinheiro colocado pelo patrocinador exclusivo. A imprensa independente é aquela que vive da notícia e, no caso da TV, também do entretenimento. Vive no duplo sentido: tem que ser reconhecida como tal pelo público (credibilidade) e tem de ganhar dinheiro com venda em bancas, de assinaturas e de publicidade. A independência é editorial e econômica ao mesmo tempo. 

Aqui, essa imprensa independente amadureceu ao longo da vida democrática pós-1985.Tem várias características, algumas boas, outras ruins, mas há um ponto essencial. A imprensa brasileira não é bem agressiva — como a qualificou uma vez o ministro Gilmar Mendes. É atrevida. Nem sempre foi. Tornou-se atrevida, especialmente na política, em tempos relativamente recentes.

Por exemplo: alguns anos atrás, repórteres políticos não se atreveriam a perguntar a um ministro do STF quem estava pagando a viagem dele ao exterior. Na verdade, não é que não se atreveriam, nem lhes ocorria perguntar esse tipo de coisa. Parecia normal que autoridades tivessem privilégios, incluindo as famosas mordomias.
Também não era um vício apenas nacional. Na Washington de John Kennedy, todo mundo sabia que o presidente gostava muito de mulheres e que as recebia na piscina da Casa Branca quando Jacqueline não estava por perto. Jornalistas sabiam, alguns até participavam das farras — e não publicavam nada. Ao contrário, publicava-se que se tratava de um feliz casal presidencial. 

Em Brasília dos anos 80 e 90, os jornalistas também sabiam das mazelas pessoais (amantes, rolos) e, digamos, profissionais dos políticos, tais como negócios paralelos. Corrupção. Não lhes ocorria publicar, mesmo porque muitos jornalistas desfrutavam de vantagens indevidas, como empregos no Congresso, em autarquias e estatais. Além de financiamentos especiais em bancos públicos. A mudança forte começou a aparecer na passagem dos anos 80 para os 90. Repórteres mais novos começaram a publicar os privilégios, os bastidores, inclusive das casernas — ou seja, as informações não oficiais, não autorizadas, mas obtidas por apuração e investigação independente.

Ao mesmo tempo, desenvolveu-se o jornalismo opinativo — outro que tanto incomoda as autoridades. Estas consideram uma impertinência quando jornalistas as criticam. Dizem que não são jornalistas, mas jornaleiros, uma ofensa a estes últimos. Mas na democracia, quem decide se uma imprensa é boa ou não é o público, com sua audiência, sua leitura, seu respeito. Não precisam me lembrar que a imprensa erra. Nós, jornalistas, sabemos disso melhor que os outros. Também sabemos reconhecer e corrigir. Os ataques simultâneos das direitas e das esquerdas, da situação e da oposição, indicam que estamos fazendo a coisa certa.


Carlos Alberto Sardenberg, jornalista

Coluna publicada em O Globo - Economia 5 de dezembro de 2019