Como de praxe, até celibatários que nada entendem de formação de crianças e educação de alunos intoxicaram o distinto público com seus diagnósticos
O pintor espanhol Francisco de Goya
retratou-se sentado e dormindo sobre suas anotações. Seu corpo luta para
não dormir, mas a força do sono é maior.
Atrás dele, criaturas soturnas espreitam o
sono do pintor: morcegos, linces, corujas e um gato preto, representando
fantasmas e medos do artista. Talvez a obra de Goya sirva de moldura para
outro massacre numa escola brasileira, que serviu de pretexto para
falsas interpretações.
Como de praxe, até celibatários que nada
entendem de formação de crianças e educação de alunos intoxicaram o
distinto público com diagnósticos mais arrumadinhos e mais bem aparados
do que seus cabelos e pestanas, preocupados em aparecer, dando a
impressão de que sabem de tudo, como sempre. Não sabem. E mostram isso
logo ao abrir a boca. Mas enganam bem, há muito tempo e a muita gente.
As coisas, porém, começam a mudar. Assim,
houve quem trouxe, como o psicólogo, advogado e assistente social Jacob
Pinheiro Goldberg, ainda no calor da hora, o claro raio ordenador para
ver os acontecimentos à luz de prática e teoria combinadas. Em resumo, as raízes destas tragédias de já
assustadora frequência estão no ambiente intoxicado em que vivem os
estudantes, onde é patente a falta de autoridade sobre adolescentes e
jovens, seja por parte dos pais, seja por parte dos professores, e no
caráter violento da sociedade brasileira e seu complexo sistema de
exclusões, sem esquecer o lado patológico e demoníaco do mal em si
mesmo. De resto, a razão ainda esbarra em aspectos inexplicáveis do
cotidiano, mesmo quando não está dormindo.
Mas o fato é que para milhões de
brasileiros, sejam crianças, adolescentes, jovens ou adultos, sempre
falta quem lhes possa dizer não. “Manda quem pode e obedece quem tem
juízo”, diz o provérbio, mas no Brasil o verbo obedecer virou pesado
anátema. Mandar também. Sem contar que muitas drogas rondam as
escolas, não apenas o tóxico, associado aos mais diversos crimes, como
sabem aqueles que frequentam o ambiente escolar e universitário.
A própria palavra assassino veio do Árabe haxaxin,
fumador de haxixe, droga utilizada para instigar jovens bandoleiros a
assaltar e matar os cruzados nos desfiladeiros do Irã, a caminho de
Jerusalém, entre os séculos XI e XII. Haxix designa erva seca em árabe, que pode ser feno, forragem, mas também o cânhamo, cannabis sativa em Latim e makanha em Quimbundo, uma língua africana. Deu maconha em Português.
O haxixe e a maconha tornaram-se drogas de
referência, mas no berço estas palavras ainda estavam cobertas pela
pureza das designações originais, sem quaisquer ligações com o crime.
Entre fins do século XI e começos do XII,
durante as primeiras cruzadas, um líder religioso nizarita, ramo
dissidente do islamismo xiita, notabilizou-se por liderar um bando que
cometia as maiores atrocidades nos desfiladeiros do Irã. Conhecido pelo apelido de Velho da Montanha,
por refugiar-se entre as montanhas do Norte do Irã, numa fortaleza
conhecida por Alamute, cujo significado é Ninho da Águia em língua
persa, o ancião chamava-se Hassan ibn al-Sabbah Homairi e, depois de
perpetrar inumeráveis homicídios, foi executado pelas tropas de Gengis
Khan em 1124, aos 90 anos.
Ele e seus liderados tinham, porém, cometido
tantos homicídios em mais de meio século de assaltos sistemáticos que a
palavra assassino, cujo étimo veio da erva consumida, com influências
do nome do próprio chefe, chegou ao Português e substituiu homicida,
confinado aos territórios jurídicos da lei, o mesmo ocorrendo em outras
línguas. Os jovens assassinos autores do massacre na
Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (SP), fizeram com que palavras
como assassino, bárbaro, pavor e medo fossem invocadas para descrever a
situação de pânico que instauraram ali. É curioso que esteja ausente a
palavra fobia nessas horas, que reservamos para medos irracionais, como
homofobia, claustrofobia, demofobia etc.
Outras singularidades estão no tenebroso e
trágico contexto. O professor Raul Brasil, que dá nome à escola paulista
onde houve o massacre, era casado com uma senhora chamada Otília. Eles
tiveram dez filhos e a todos deram nomes iniciados por H: Helena, Hugo,
Herval, Hélio, Heitor, Hilda, Heberth, Hebe, Haydeé e Heros. No reino das palavras, escrevendo apenas
para dizer outras coisas, não com o fim de acrescentar alguma luz sobre a
tragédia, mas com o propósito de aliviar a tamanha tristeza que tomou
conta de todos, lembremos que a inocência original das palavras é
violada de forma inaudita quando elas são usadas para expressar outras
realidades.
Assim, a palavra escola está mudando de
significado ao longo destas últimas décadas no Brasil. Pouco se aprende
ali, pela decadência assustadora do ensino, e para piorar tornou-se,
como as igrejas, os templos, as universidades, as mesquitas e as
sinagogas em tantos lugares do mundo, um alvo de terroristas
desesperados para aparecer na mídia, ainda que o coroamento de seus atos
seja o suicídio. Algo deve ser feito e a sociedade ainda não
sabe como defender-se de assassinos que querem matar, mas também querem
morrer junto com suas vítimas.
Uma tarefa urgente, porém, se impõe: acordar a razão.
*Deonísio da SilvaDiretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
http://portal.estacio.br/instituto-da-palavra