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domingo, 21 de fevereiro de 2021

A Constituição e a LEI DE TALIÃO - Marcel Van Hattem, deputado federal

Marcel Van Hattem, deputado federal

A entrevista do presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, à Folha é preocupante. Vou pinçar o trecho mais grave, na minha opinião, e volto em seguida:

[Pergunta do jornalista:]

Se a Câmara derrubar a prisão vai ser um mau sinal para a sociedade?

[Resposta do Ministro Fux]:

Se a Câmara derrubar, estará agindo de acordo com o que a lei permite e o que a jurisprudência do STF consagrou.

A jurisprudência do STF admitiu que a Câmara pode, dentro da sua competência constitucional, derrubar. No meu modo de ver, o Supremo vai respeitar essa decisão.

Agora, a sociedade é leiga, a sociedade não conhece essas minúcias constitucionais. Eu acho que a sociedade tem uma capacidade de julgar imediatamente quando os atos são assim tão graves. Então eu acho que a sociedade não está preparada para receber uma carta de alforria em favor desse paciente."

[um esclarecimento: os trechos destacados são os mais absurdos. Incrível que o ministro do STF entenda que a permissão da Lei não é suficiente (percebam que a Lei em questão é a Constituição Federal) sendo necessário que o Supremo admita que o permitido pela Lei seja executado.]

A "minúcia" constitucional a que o ministro se refere é nada mais nada menos do que a imunidade parlamentar (ou inviolabilidade), civil ou penalmente, por "quaisquer de suas opiniões, palavras e votos" do artigo 53 da nossa Constituição, conquista de todos os regimes democráticos sólidos vigentes, e a vedação de prisão de deputado ou senador se não for "em flagrante de crime inafiançável". Se sua Excelência, Luiz Fux fosse um revolucionário falando em "minúcia constitucional", até se entenderia. Mas trata-se de um Ministro do Supremo dizendo que um artigo inteiro da Constituição é apenas uma "minúcia" e que a sociedade não está "preparada" para entendê-la.


A Câmara PRECISA se pronunciar pela volta urgente do seu Conselho de Ética e CONTRA o AI-5 do STF: ataques à democracia e ao Estado de Direito precisam parar!

[com um pequeno atraso, mas extremamente atual]

Trata assim o Ministro ao povo brasileiro como se fosse incapaz, como se fosse bárbaro. Como se a Constituição, que ele tem por dever guardar, não fosse a síntese dos princípios e garantias fundamentais do próprio povo brasileiro! Esse povo, ademais, é representado numa democracia por parlamentares, que foram os responsáveis pela elaboração e aprovação de uma Constituição e também são responsáveis por suas emendas.

Não cabe ao Supremo dizer ao Parlamento ou à sociedade que um trecho do que está escrito na Constituição não valeria porque "a sociedade não entenderá". É o contrário: data vênia, sr. Ministro, quem não entende o seu lugar é o Supremo! Ao STF cabe guardar a Constituição e, no máximo, interpretar onde há margem para divergência. Não é o caso dessa prisão, ilegal, inconstitucional!

Tenho repetido: considero deplorável a fala do deputado Daniel Silveira, bem como seus atos no momento da prisão ilegal, mas é à Câmara dos Deputados e ao seu Conselho de Ética que cabe julgá-lo. Inclusive há casos mais graves de outros parlamentares na fila para serem apreciados e estamos cobrando há muito tempo que o Conselho volte a se reunir, o que finalmente acontecerá na próxima semana.  
Substituir, porém, o que diz a Constituição por uma decisão monocrática e de plenário que a contradizem é uma afronta e um ataque à democracia, ao Estado de Direito e, sim, à própria sociedade brasileira. Não é possível que execráveis falas em louvor ao AI-5 sejam respondidas com atos provenientes do Judiciário também dignos de um AI-5, posto que arbitrários e inconstitucionais.

 Marcel Van Hattem é deputado federal pelo Novo/RS


segunda-feira, 18 de março de 2019

O sono da razão de assassinos intoxicados

Como de praxe, até celibatários que nada entendem de formação de crianças e educação de alunos intoxicaram o distinto público com seus diagnósticos



Deonísio da Silva
O pintor espanhol Francisco de Goya retratou-se sentado e dormindo sobre suas anotações. Seu corpo luta para não dormir, mas a força do sono é maior.
Atrás dele, criaturas soturnas espreitam o sono do pintor: morcegos, linces, corujas e um gato preto, representando fantasmas e medos do artista. Talvez a obra de Goya sirva de moldura para outro massacre numa escola brasileira, que serviu de pretexto para falsas interpretações.

Como de praxe, até celibatários que nada entendem de formação de crianças e educação de alunos intoxicaram o distinto público com diagnósticos mais arrumadinhos e mais bem aparados do que seus cabelos e pestanas, preocupados em aparecer, dando a impressão de que sabem de tudo, como sempre. Não sabem. E mostram isso logo ao abrir a boca. Mas enganam bem, há muito tempo e a muita gente.

As coisas, porém, começam a mudar. Assim, houve quem trouxe, como o psicólogo, advogado e assistente social Jacob Pinheiro Goldberg, ainda no calor da hora, o claro raio ordenador para ver os acontecimentos à luz de prática e teoria combinadas.  Em resumo, as raízes destas tragédias de já assustadora frequência estão no ambiente intoxicado em que vivem os estudantes, onde é patente a falta de autoridade sobre adolescentes e jovens, seja por parte dos pais, seja por parte dos professores, e no caráter violento da sociedade brasileira e seu complexo sistema de exclusões, sem esquecer o lado patológico e demoníaco do mal em si mesmo. De resto, a razão ainda esbarra em aspectos inexplicáveis do cotidiano, mesmo quando não está dormindo.

Mas o fato é que para milhões de brasileiros, sejam crianças, adolescentes, jovens ou adultos, sempre falta quem lhes possa dizer não. “Manda quem pode e obedece quem tem juízo”, diz o provérbio, mas no Brasil o verbo obedecer virou pesado anátema. Mandar também.  Sem contar que muitas drogas rondam as escolas, não apenas o tóxico, associado aos mais diversos crimes, como sabem aqueles que frequentam o ambiente escolar e universitário.

A própria palavra assassino veio do Árabe haxaxin, fumador de haxixe, droga utilizada para instigar jovens bandoleiros a assaltar e matar os cruzados nos desfiladeiros do Irã, a caminho de Jerusalém, entre os séculos XI e XII. Haxix designa erva seca em árabe, que pode ser feno, forragem, mas também o cânhamo, cannabis sativa em Latim e makanha em Quimbundo, uma língua africana. Deu maconha em Português.
O haxixe e a maconha tornaram-se drogas de referência, mas no berço estas palavras ainda estavam cobertas pela pureza das designações originais, sem quaisquer ligações com o crime.

Entre fins do século XI e começos do XII, durante as primeiras cruzadas, um líder religioso nizarita, ramo dissidente do islamismo xiita, notabilizou-se por liderar um bando que cometia as maiores atrocidades nos desfiladeiros do Irã. Conhecido pelo apelido de Velho da Montanha, por refugiar-se entre as montanhas do Norte do Irã, numa fortaleza conhecida por Alamute, cujo significado é Ninho da Águia em língua persa, o ancião chamava-se Hassan ibn al-Sabbah Homairi e, depois de perpetrar inumeráveis homicídios, foi executado pelas tropas de Gengis Khan em 1124, aos 90 anos.

Ele e seus liderados tinham, porém, cometido tantos homicídios em mais de meio século de assaltos sistemáticos que a palavra assassino, cujo étimo veio da erva consumida, com influências do nome do próprio chefe, chegou ao Português e substituiu homicida, confinado aos territórios jurídicos da lei, o mesmo ocorrendo em outras línguas. Os jovens assassinos autores do massacre na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (SP), fizeram com que palavras como assassino, bárbaro, pavor e medo fossem invocadas para descrever a situação de pânico que instauraram ali. É curioso que esteja ausente a palavra fobia nessas horas, que reservamos para medos irracionais, como homofobia, claustrofobia, demofobia etc.

Outras singularidades estão no tenebroso e trágico contexto. O professor Raul Brasil, que dá nome à escola paulista onde houve o massacre, era casado com uma senhora chamada Otília. Eles tiveram dez filhos e a todos deram nomes iniciados por H: Helena, Hugo, Herval, Hélio, Heitor, Hilda, Heberth, Hebe, Haydeé e Heros.  No reino das palavras, escrevendo apenas para dizer outras coisas, não com o fim de acrescentar alguma luz sobre a tragédia, mas com o propósito de aliviar a tamanha tristeza que tomou conta de todos, lembremos que a inocência original das palavras é violada de forma inaudita quando elas são usadas para expressar outras realidades.

Assim, a palavra escola está mudando de significado ao longo destas últimas décadas no Brasil. Pouco se aprende ali, pela decadência assustadora do ensino, e para piorar tornou-se, como as igrejas, os templos, as universidades, as mesquitas e as sinagogas em tantos lugares do mundo, um alvo de terroristas desesperados para aparecer na mídia, ainda que o coroamento de seus atos seja o suicídio. Algo deve ser feito e a sociedade ainda não sabe como defender-se de assassinos que querem matar, mas também querem morrer junto com suas vítimas.
Uma tarefa urgente, porém, se impõe: acordar a razão.
*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
http://portal.estacio.br/instituto-da-palavra