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quinta-feira, 31 de maio de 2018

Sete lições dos caminhoneiros

A palavra de ordem “Fora, Temer!” é unificadora de extremos. Houve ciberataques aos órgãos oficiais. Grupos radicais tentaram derrubar o governo e atuarão fortemente nas eleições

Não se recomenda a ninguém jogar um paralelepípedo para o alto, bem na vertical, e ficar olhando para ver o que acontece. Com sorte, o sujeito escapa com vida de um traumatismo craniano. A greve dos caminhoneiros, depois de 10 dias, entrou mesmo em declínio, mas quase deixou a economia do país em estado de coma. A primeira lição a se tirar talvez seja a de que nenhuma categoria profissional tem o direito de fazer a nação de refém, como disse o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF). Por isso, é legítimo utilizar os meios de defesa do Estado para evitar que isso aconteça, inclusive as Forças Armadas. Não importa que o governo Temer seja impopular nem que a opinião pública, como um suicida, majoritariamente apoie o movimento como quem quer cabecear um paralelepípedo. Todos devem ter seus direitos de ir e vir respeitados.

A segunda lição é a de que o país não está preparado para enfrentar um locaute das empresas de transportes e de distribuição, que foram a espinha dorsal do movimento; sem esse apoio, a greve não teria a mesma envergadura. Agora, sabemos que esse setor minoritário da economia tem o poder de pôr em colapso o país. É preciso repensar o atual modelo de transportes. Um pacto perverso entre o setor automotivo, os sindicatos de metalúrgicos e o governo gerou o excesso de oferta de frete no mercado, exacerbado pela “nova matriz econômica” e a recessão do governo Dilma.

Terceira lição: os militares não estavam preparados para enfrentar uma crise do modelo de logística que tanto defenderam como via de integração nacional. Não havia um plano de contingência para prevenir o bloqueio de portos, refinarias, centros de distribuição e principais eixos rodoviários do país; as Forças Armadas, mesmo convocadas, demoraram 10 dias para abrir os corredores de abastecimento dos principais centros do país. Até o aeroporto de Brasília ficou sem condições operacionais, o que não acontece nem em Bagdá, Damasco e Cabul.

A substituição das ferrovias pelas rodovias no Brasil tem muito a ver com a experiência da II Guerra Mundial, na qual o deslocamento rápido de tropas e blindados alemães por rodovias surpreendeu os franceses e escancarou a obsolescência da Linha Maginot. As fortificações construídas pela França ao longo de suas fronteiras com a Alemanha e a Itália, após a Primeira Guerra Mundial, entre 1930 e 1936, eram compostas de 108 fortes a 15 km de distância uns dos outros, edificações menores e casamatas, e mais de 100 km de galerias. Interrompida a 20km de Sedan, por ali avançaram as britzkrieger alemãs, apesar das lições da derrota de Napoleão III e seus 88 mil homens, no mesmo local, em 1870, na guerra franco-prussiana. Com a Linha Maginot intacta, a França foi ocupada e as tropas inglesas cercadas e empurradas para o mar.

Quarta lição da greve: as estruturas verticais de poder, em tempos líquidos, não conseguem traduzir e representar a sociedade no fluxo das crises. Como nas manifestações de 2013, os caminhoneiros se organizaram horizontalmente pelas redes sociais; o movimento continuou mesmo após os sindicatos terem fechado um acordo com o governo. Foi preciso outra negociação, com líderes regionais; ainda assim continuou mais radicalizado e violento, porque a minoria fez uso da força para manter os bloqueios nas estradas. Não houve um ponto estratégico, em todo o território nacional, em que um grupo atuante não impusesse suas decisões aos demais, num nível de cooperação e coordenação superior até ao das forças de segurança.

Eleições
A ficha dos políticos só caiu quando eles se deram conta de que havia setores do movimento dos caminhoneiros interessados em desestabilizar o Planalto e provocar uma intervenção militar. Já não existe um governo de coalizão, essa é a quinta lição. O isolamento do presidente Michel Temer foi absoluto. Não houve solidariedade do Congresso. Alguns governadores mandaram a Polícia Militar se recolher. Corretamente, as Forças Armadas foram orientadas a negociar exaustivamente com os grevistas, jamais entrar em confronto com os manifestantes. Foram raros os casos de emprego de tropa de choque para dissolver bloqueios ilegais e até desumanos, no caso de transporte de oxigênio e produtos farmacêuticos. Dois homicídios estão na conta de grevistas.


A sexta lição: a Constituição de 1988 ainda é o que nos une, com todos os defeitos. Graças a elas as instituições funcionam e têm legitimidade. Seus mecanismos, quando acionados, responderam às necessidades, mais uma vez tendo o Judiciário como poder moderador. Temos um governo fraco, mas um Estado forte, capaz de exercer suas funções essenciais: arrecadar, normatizar e coagir. Finalmente, a última lição: a greve dos caminhoneiros foi instrumentalizada por grupos radicais. Estão muito organizados na internet, utilizam perfis falsos, robôs e fake news. A maioria é de direita e simpática ao deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ), candidato a presidente da República, mas setores de esquerda a eles se aliaram para desestabilizar o governo, irresponsavelmente. A palavra de ordem “Fora, Temer!” é unificadora dos extremos. Houve muitos ciberataques aos órgãos oficiais. Está óbvio que esses grupos atuarão fortemente nas eleições, com os mesmos métodos. Até que ponto tentarão inviabilizá-las ou fraudá-las?

Férias — Entrarei em recesso por três semanas. Leonardo Cavalcanti me substituirá.

Nas entrelinhas - Luiz Carlos Azedo


quinta-feira, 3 de maio de 2018

Contos para assustar



Em meio a autores clássicos estrangeiros, brasileiros se destacam com textos sobre loucura, alucinação e canibalismo 

Ler contos de terror escritos pelo americano Edgar Allan Poe ou pelo alemão E. T. A. Hoffmann, dois expoentes da literatura que floresceu entre o século XIX e o início do século XX e especialistas na arte de criar enredos de assombrar, é sempre um prazer — mas um prazer conhecido. É claro que ambos estão entre os 18 autores reunidos na antologia Contos de assombro (Carambaia, 224 págs., R$ 89,90). A lista, no entanto, vai além do cânone. Traz autores pouco ou nada associados aos gêneros pós-góticos do fantástico e sobrenatural, como o russo Ivan Turguêniev, o dramaturgo italiano Luigi Pirandello, a inglesa Virginia Woolf — e até os brasileiros João do Rio e Medeiros e Albuquerque. Torna-se, assim, uma leitura interessante.

O livro, de acordo com o editor Fabiano Curi, foi inspirado nos dois volumes de Ghost stories, publicados pela editora britânica Everyman em sua coleção Library pocket classics series. As coletâneas originais se ativeram aos critérios de seleção expostos no título, com histórias de autores tão insuspeitos como Elizabeth Bowen e Jorge Luis Borges, Eudora Welty e Vladimir Nabokov, Ray Bradbury e Edith Wharton, entre outros. A versão brasileira tem uma ambição maior. Além de tentar se afastar da ideia de gênero ao assumir “assombro” como tema, demonstra como a expansão do fantástico e do sobrenatural no período abrangido foi ampla e atingiu uma grande variedade de idiomas e tradições culturais.

>> Hilda Machado, uma poeta fora do lugar
Em meio aos estrangeiros, três brasileiros se destacam, com contos de alucinação, loucura e canibalismo. São textos pouco ou nada conhecidos de cada um deles. O flaneur João do Rio, um dos primeiros a transportar para a literatura técnicas jornalistas e vice-versa, comparece com “Pavor”, publicado no jornal O Commercio de São Paulo, em novembro de 1911, e posteriormente inserido na coletânea Rosário da ilusão, de 1921. No conto, um homem chega em casa na alta madrugada, após vagar a esmo pelas ruas “apressado e sem destino”. “Vibravam-lhe os nervos, tinha a boca amarga, o lábio seco. A passeata perdida sob a chuva entristecera-o, enchera-o de uma dor inquieta, de um receio indeciso. E estava ali, querendo dormir, só dormir, senão dormir.” Nesse estado de excitação e em estado de vigília, ele começa a delirar com os sons e barulhos da casa.

Autor da letra do Hino da Proclamação da República, o pernambucano Medeiros e Albuquerque, que se dividiu em sua carreira literária entre o Simbolismo, a narrativa decadentista e o Parnasianismo, assina “O soldado Jacob”, publicado anteriormente numa coletânea intitulada Um homem prático, de 1898. Ambientado no fim de um ano qualquer em Paris, o conto se traveste na crônica de um estudante de medicina que faz uma visita a um hospital psiquiátrico onde está internado há 23 anos o tal Jacob. Veterano da Guerra Franco-Prussiana, o militar sofre com um trauma permanente, o que lhe confere gestos bruscos: “Sentia-se bem, à mais simples inspeção, que o velho tinha diante de si um fantasma qualquer, qualquer, alucinação do seu cérebro demente — e forcejava por afastá-la”.

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