É possível que avance no governo a tese de que a operação reduz as chances de aprovação da reforma da Previdência
Aqui no alto da Serra de Ibitipoca, uma bela região de Minas, chove e
faz frio. Na minha cabeça, tentava organizar um artigo sobre uma
possível intervenção militar na Venezuela. Rememorava a Guerra do Iraque
e os grandes debates da época. Achava uma visão idealista tentar impor,
numa sociedade singular, a democracia liberal à ponta do fuzil. Continuo achando. Lembro-me de que, num debate em Paraty, o escritor
Christopher Hitchens ficou bravo com meus argumentos. Nada grave.
Semanas depois, escreveu um artigo simpático sobre aquela noite.
Hitchens, ao lado de outros intelectuais como Richard Dawkins,
dedicava-se muito ao combate da religião. Mas não percebeu como suas
ideias sobre a invasão do Iraque, como observou John Gray, tinham uma
ponta de religiosidade.
Esse era meu plano. No alto do morro, o único lugar onde isso era
possível, o telefone deu sinal da mensagem: Temer foi preso. Moreira
Franco também. A possibilidade da prisão de Temer sempre esteve no ar.
Na última entrevista, lembrei a ele que ia experimentar a vida na
planície. Aqui neste pedaço da Mata Atlântica, não é o melhor lugar para se
informar em detalhes. No meio da semana, tinha escrito um artigo sobre a
derrota da Lava-Jato no STF, que deslocou o caixa 2 e crimes conexos
para a Justiça Eleitoral. Lembrava que o grupo de ministros que se opõem à Lava-Jato aproveitou um
momento de desequilíbrio. Foi o escorregão dos procuradores ao tentar
destinar R$ 2,3 bilhões, oriundos do escândalo da Petrobras, para uma
fundação. Eles recuaram para uma alternativa mais democrática, um uso do
dinheiro através de avaliação mais ampla das necessidades do país.
Distante dos detalhes da prisão de Temer, tento analisar este novo
momento da Lava-Jato. Até que ponto vai fortalecê-la ou ampliar o leque
de forças que se opõem a ela, apesar de sua popularidade? Diante da
prisão do ex-presidente, que é do MDB, certamente vai surgir uma
tendência de opor as reformas econômicas à Lava-Jato. É uma situação nova, que ainda tento avaliar. O ministro Sergio Moro tem
um pacote de leis contra o crime que já está sendo colocado em segundo
plano, em nome da reforma da Previdência. É possível que avance junto ao
governo uma nova tese, a de que a Lava-Jato prejudica as reformas,
reduzindo suas chances de aprovação. Além disso, há o mercado, sempre
expressando seu nível de pessimismo.
As acusações contra Temer eram conhecidas. Como diz um analista
estrangeiro, ele gastou grande parte da energia e do tempo de seu
governo para tentar escapar delas. Por essas razões, será necessário
deixar bem claras as razões que levaram Temer à cadeia. É apenas mais um
ex-presidente; mas, no caso de Lula, só houve prisão depois de
condenado em segunda instância. Essa diferença desloca o debate técnico
para a causa da prisão. Daí a importância de bons argumentos. A ideia geral é de que a Lava-Jato deve seguir seu curso
independentemente de análises políticas. Mas ele depende do apoio da
opinião pública. Qualquer momento de fragilidade é usado pelos lobos no
Supremo que querem devorá-la.
Numa análise mais geral, as eleições fortaleceram a Lava-Jato. A própria
ida de Moro para o governo era o sinal de que agora ela teria o
Executivo como aliado. Mas as coisas não são simples assim. A escolha de
Moro por Bolsonaro foi um gesto político.
A renovação no Parlamento pode ter ampliado o apoio à Lava-Jato. Mas
ainda é bastante nebuloso prever que leis contra o crime, especialmente o
do colarinho branco, tenham um trânsito fácil, maioria tranquila.
O governo perde prestígio, segundo as pesquisas. Está dependendo da
reforma da Previdência. Pode haver uma convergência momentânea para
empurrar com a barriga as leis contra a corrupção. Houve maioria no Supremo para mandar processos para uma Justiça
Eleitoral sem condições de investigá-los com rigor. A mesma maioria de
um voto pode derrubar a prisão em segunda instância. Nesse momento, não adiantará aquele velho argumento: perdemos uma
batalha, mas venceremos no final. Uma sucessão de derrotas precisa
acender o sinal de alarme. Somente uma interação entre a opinião pública
e a parte do Congresso que entendeu a mensagem das urnas pode reverter
essa tendência. Haverá força para isso?
Aqui no meio do mato, não me arrisco a concluir nada. Eleições não
decidem tudo. Ainda mais uma falta de rumo dos vencedores, que chega a
nos fazer temer que, na verdade, não tenham resolvido nada. Exceto mudar
o rumo, da esquerda para a direita.
Fernando Gabeira - O Globo