O Brasil parido pela chegada das caravelas de
Cabral já nasceu metido a esperto. Souberam disso tarde demais aqueles
viventes cor de cobre, sem roupas no corpo nem pelos nas partes
pudendas, os homens prontos para trocar pedras preciosas por
quinquilharias, as mulheres prontas para abrir o sorriso e as
pernas para forasteiros pois os nativos do lugar praticavam sem remorso o
que era pecado só do outro lado do grande mar, e não poderiam
ser tementes a um Deus que não conheciam nem queriam conhecer porque
desde o começo dos tempos adoravam deuses muito mais lúdicos.
O Brasil já nasceu carnavalesco. Nem um Joãosinho Trinta em transe
num terreiro de candomblé teria ousado, como fez na pintura famosa o
português Henrique Soares — a maior autoridade religiosa presente e
celebrante da primeira missa naquelas imensidões misteriosas —, juntar
numa mesma alegoria um padre de batina erguendo o cálice sagrado,
navegantes fantasiados de soldados medievais, marinheiros com roupa de
domingo, índios com a genitália desnuda que séculos depois seria banida
dos desfiles por bicheiros respeitadores dos bons costumes e a cruz dos
cristãos no amistoso convívio com arcos, flechas e tacapes.
O Brasil já nasceu preguiçoso.
Deslumbrados com a demasia de praias com areias finas e brancas, banhadas por
ondas em todos os matizes de verde e azul, muita mata, muita flor, muito rio,
muito peixe, muito bicho de carne tenra, muita fruta sumarenta e, melhor que
tudo, muita índia pelada, os degredados, os marinheiros desertores, os
náufragos sobreviventes e os demais colonizadores do território paulista
esperaram 200 anos até criarem ânimo para a escalada do paredão verde-escuro
que separava o mar do Planalto, e depois esperariam mais um século antes de
aventurar-se pelos sertões estendidos por trás da mata virgem.
Foi um esforço de tal forma
extenuante que ficou estabelecido que, dali por diante, tanto os filhos da
terra quanto os estrangeiros e seus descendentes sempre deixariam para amanhã o
que deveriam ter feito ontem, com exceção das coisas que efetivamente
merecessem urgência urgentíssima — por exemplo, seduzir a filha do cacique,
façanha que transformou João Ramalho, o inventor do golpe do baú à brasileira,
em homem rico e poderoso líder político, além de placa em muitas esquinas de um
Brasil que não chegaria a conhecer.
O Brasil cresceu
coerentemente incoerente. Hostilizou os civilizadores holandeses para manter-se
sob o jugo de Portugal, teve como primeira e única rainha uma doida de
hospício, tratou com bastante cortesia o filho da rainha que roubou o banco da
matriz na vinda e o banco da colônia na volta, promoveu a primeiro imperador um
príncipe habituado a passar mais tempo enrolado em lençóis do que sentado no
trono, teve um segundo imperador que pelo menos nos retratos era mais velho que
o pai, foi o derradeiro país do subcontinente a abolir a escravidão e o último
a virar República.
Sem saber direito por que saía,
Pedro II perdeu o emprego de monarca ainda sem saber direito por que ali
chegara.
No país nascido e criado sob
o signo da insensatez, o cortejo dos presidentes, ministros, senadores,
deputados federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores aberto
em 1889 informa que a troca de regime não mudou o espírito da coisa: o Brasil
republicano é o Brasil monárquico de terno e gravata, só que mais
cafajeste.
O país que proclamou
imperador uma criança de 5 anos que se tornaria adulta aos 15 seria governado,
alguns séculos depois, por um presidente que sempre agiu como delinquente
juvenil e, em seguida, por uma presidente com jeitão de avó menos ajuizada que
neto de fralda. Mas o Brasil não sentiu medo ao ver no trono um menino sem pai nem
mãe. Com dois sessentões no comando é quem tem mais de cinco neurônios que se
sentiu sem pai nem mãe.
O STF vive mostrando que o
que está muito ruim sempre pode piorar
A carta de Pero Vaz de
Caminha avisou já em 1500 que o Brasil seria irremediavelmente cartorial ao
transformá-lo no único país do mundo com certidão de nascimento, verbosa como
ordenam lusitanas tradições e com tamanho suficiente para descrever com
minúcias de doutor no assunto o recém-nascido contemplado pelo escriba que nem
sequer sabia se aportara numa ilha, num continente, numa extensão das Índias ou
na estratosfera, mas não continha a excitação diante das extravagâncias de um
lugar cujos habitantes “andam nus, sem cobertura alguma, e não se preocupam em
cobrir ou deixar de cobrir suas próprias vergonhas mais do que se preocupariam
em mostrar o rosto”.
A história constitucional de
um país com tal DNA não poderia ter parentesco com a dos Estados Unidos. A
Constituição norte-americana nasceu em 1789 com sete artigos e cinco páginas
manuscritas. Passados mais de 200 anos, incorporou 27 emendas. Nesse período, o
Brasil teve sete Constituições. Ao ser promulgada em 1988, a mais recente tinha
245 artigos espalhados por 296 páginas. Dois desses artigos foram
infiltrados furtivamente pelo relator Nelson Jobim com o consentimento de
Ulysses Guimarães. Como o presidente da Constituinte morreu, só Jobim sabe
quais são as normas constitucionais aprovadas em votação secreta por dois
parlamentares.
Em 2019, ao completar 30
anos, a Carta Magna brasileira fora emendada mais de 100 vezes. Esse
cipoal jurídico exige a mobilização de intérpretes, e para isso foi criado o
Supremo Tribunal Federal. O problema é que os atuais titulares compõem o mais
bisonho Timão da Toga de todos os tempos.
Mais angustiante ainda é constatar
que o STF vive mostrando que o que está muito ruim sempre pode piorar.
Os brasileiros que acordaram
na quinta-feira entusiasmados com a iminente aposentadoria de Celso de Mello
foram dormir desolados com a decisão do presidente Jair Bolsonaro: o Pavão de
Tatuí será substituído por Kássio Nunes. Não há perigo de o Supremo melhorar.
Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste