Neymar e o Fisco: a bola fora do craque
O
Ministério Público Federal denuncia o atacante e seu pai e empresário à
Justiça por sonegação fiscal e falsidade ideológica, crimes que têm
pena prevista de até cinco anos de prisão.
É o mais novo lance em uma
jogada que ameaça, fora de campo, o mais brilhante astro do futebol
brasileiro da última década e expõe o lado nebuloso do esporte mais
popular do mundo
AS ACUSAÇÕES CONTRA O PAI DE NEYMAR - Empresário do atacante, Neymar
Santos ocupa lugar de destaque na denúncia do Ministério Público. Ele é
suspeito de ser o principal organizador da estratégia utilizada para
pagar menos impostos, ao transferir os ganhos da pessoa física para a
jurídica, e de adulterar contratos para incluir dados que não existiam
na época em que foram firmados(VEJA.com/VEJA)
Aos 23 anos, Neymar está no auge da carreira. Há três semanas, ficou
pela primeira vez entre os três melhores do mundo, feito que nenhum
jogador brasileiro tinha alcançado nos últimos oito anos. Em oito meses,
no ataque do Barcelona, conquistou a Liga espanhola, a Copa do Rei, a
Liga dos Campeões e o Mundial de Clubes. Na seleção, já é o quinto maior
goleador da história, com 46 gols. Isso tudo dentro de campo. Fora
dele, o atacante tem colecionado uma derrota atrás da outra. Na Espanha,
é alvo de dois processos, um cível e o outro criminal, acusado de
corrupção e estelionato em uma investigação que apura se ele forjou
contratos para esconder parte do dinheiro que recebeu ao trocar o Santos
pelo Barcelona.
Segundo a estimativa do Fisco espanhol, o brasileiro deixou de pagar 9
milhões de euros (39,4 milhões de reais, no câmbio atual) em impostos.
Nesta semana, ele deve depor na Justiça espanhola sobre as acusações na
área penal. No Brasil, os problemas também estão no seu encalço. Em
setembro, a Justiça determinou o bloqueio de 188,8 milhões de reais do
jogador, valor da multa aplicada pela Receita por sonegação de impostos
entre 2011 e 2013 em contratos com o Santos, com empresas para fazer
publicidade e na transação que o levou para a Espanha. Mas o golpe mais
duro contra o maior astro do futebol brasileiro veio na semana passada. O
Ministério Público Federal denunciou à Justiça Neymar e seu pai e
empresário, Neymar Santos, sob as acusações de falsidade ideológica e
sonegação fiscal. Além dos dois, foram denunciados o ex-presidente do
Barcelona Sandro Rosell e o atual, Josep Maria Bartolomeu. A pena para
esses dois crimes pode chegar a cinco anos de prisão.
Marcação cerrada - O ídolo do Barcelona pode se tornar réu na Justiça brasileira(Matthew Ashton/AMA/Getty Images)
De acordo com a denúncia sigilosa feita pelo procurador Thiago
Lacerda Nobre na quarta-feira passada, a que VEJA teve acesso com
exclusividade, Neymar pai e Neymar filho criaram empresas de fachada e
adulteraram documentos para pagar menos impostos. O mecanismo utilizado é
simples: para escaparem dos 27,5% da mordida do Leão sobre pessoas
físicas, o jogador e seu pai criaram empresas para receber a maior parte
de seu salário no Santos e dos contratos de publicidade e, assim, pagar
uma alíquota menor, o que significou um abatimento de mais de 50% no
imposto a pagar.
Em seis anos, eles abriram três empresas: a Neymar
Sport e Marketing, a N&N Consultoria Esportiva e a N&N
Administração de Bens. Nenhuma delas, segundo a denúncia da
Procuradoria, possuía "capacidade econômico-financeira, gerencial ou
operacional" para administrar a carreira de Neymar - os sócios eram o
pai e a mãe de Neymar e havia apenas dois funcionários, que trabalhavam
como seguranças. De 2010 a 2013, Neymar recebeu 43,78 milhões de reais
do Santos, mas só 8,1 milhões em forma de salário, como pessoa física. O
restante foi por meio dos "contratos de imagem" firmados com suas
empresas.
Apenas em 2011, as companhias dos Neymar também selaram ao
menos onze contratos com patrocinadores, que somaram quase 75 milhões de
reais. Afirma o procurador, que trabalhou em conjunto com a Receita
Federal: "Fica muito claro que Neymar e seu pai constituíram as empresas
com o único objetivo de receber por elas os valores dos contratos e
assim pagar menos impostos". A assessoria de Neymar disse que ele e seu
pai não vão se manifestar, pois não foram notificados e não têm ciência
dos fatos.
O caso de Neymar é o mais ruidoso, seja pelos valores, seja por
envolver o mais brilhante jogador de futebol do país na última década,
porém está longe de ser o único. A marcação sobre esse tipo de arranjo
tem se tornado mais cerrada nos últimos anos, mas sempre existiu. No
ataque, a Receita, que no caso do craque do Barcelona e da seleção
brasileira fez tabelinha com o Ministério Público. Na defesa, advogados
tributaristas que alegam tratar-se de uma prática legítima.
Entre 2012 e 2015, outros 88 jogadores foram autuados pela Receita
Federal. Afirma Kleber Cabral, vice-presidente da Associação Nacional
dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco): "Nesses
casos, acreditamos que o direito de imagem foi utilizado para substituir
o salário do jogador. Assim, tanto o atleta quanto o clube pagam menos
impostos. Só que, na verdade, há uma relação trabalhista mascarada como
prestação de serviços".
Os tributaristas contrários à interpretação da Receita afirmam que o
principal problema é a rigidez do Fisco na análise da legislação. Diz
Felipe Dutra, professor do Ibmec: "A discussão correta é: faz sentido ou
não que a empresa exista? Se o jogador nunca usou sua imagem fora do
gramado, não. Mas Neymar é uma grife, com contratos de publicidade, que
traz rendimentos para o clube. Pode alegar, com razão, que precisa de
uma estrutura empresarial para melhorar a gestão de sua marca". Um
empecilho para essa interpretação é o fato de as empresas em questão não
terem nenhuma estrutura. Afirma o advogado Felipe Ferreira Silva, autor
do livro Tributação no Futebol: Clubes e Atletas: "Sem funcionários,
colaboradores ou sede, não há como provar o propósito negocial da
empresa. Hoje em dia é comum, inclusive em outros países, que os fiscos
cobrem multas e impostos quando as firmas são constituídas com o fim
único de reduzir ou não pagar tributos".
É por isso que, ao lado de Neymar, outros craques que entrariam
facilmente numa seleção dos melhores do mundo também enfrentam problemas
na Justiça. No gol está o ex-goleiro do Real Madrid Iker Casillas, hoje
no Porto: em 2014, ele fez um acordo com a Receita espanhola e pagou 2
milhões de euros por "discrepância na interpretação das normas". O
meio-campo é formado por Xabi Alonso, do Bayern de Munique, investigado
por crimes fiscais por usar empresas no exterior para receber direitos
de imagem entre 2010 e 2012, quando jogava no Real Madrid, e pelo
argentino Javier Mascherano, volante do Barcelona, condenado na semana
retrasada a um ano de prisão e a pagar uma multa de 815 000 euros por
sonegar 1,5 milhão de euros entre 2011 e 2012. No ataque, ao lado de
Neymar, encontra-se o argentino Lionel Messi, acusado, juntamente com o
pai, de fraudes fiscais entre 2007 e 2009 que somariam 4,1 milhões de
euros. No julgamento, que começa em maio, o Ministério Público pedirá
pena de 22 meses de prisão, além de pagamento de multa sobre o valor
devido.
Os problemas do atacante brasileiro não se resumem à interpretação da
Receita. Ele também é acusado pelo Ministério Público Federal de
fraudar documentos para pagar menos tributos. Em vários casos, a
investigação constatou que os contratos das empresas de Neymar com o
Santos e com patrocinadores são anteriores à criação delas. Funcionava
assim, segundo a denúncia: o atacante e seu pai fechavam o contrato
entre a sua empresa e as outras partes, mesmo antes de ela ter sido
registrada e ter um CNPJ.
Depois, quando esses documentos já haviam sido
obtidos, eles inseriam os dados nos contratos com data anterior. Um
exemplo: em 10 de maio de 2006, uma das empresas, a Neymar Sport, fechou
um contrato com o Santos para a exploração do direito de imagem do
craque, em que já constava o seu CNPJ. O problema é que esse número
ainda não existia - ele só foi emitido doze dias depois, em 22 de maio.
Conclui o procurador na denúncia: "Trata-se de documento antedatado e
cujos negócios jurídicos foram simulados".
Um dos grandes lances da investigação é a parte referente à venda de
Neymar para o Barcelona, uma negociação que foi anunciada com o valor de
57 milhões de euros, mas que na verdade envolveu cerca de 90 milhões de
euros. A investigação reconstituiu passe a passe os bastidores do
acerto. Em 6 de dezembro de 2011 - quando Neymar ainda tinha contrato
com o Santos até agosto de 2015 e o Barcelona estava proibido pela Fifa
de contratar jogadores por ter negociado com menores de 18 anos -, o
clube espanhol fez um contrato com uma de suas empresas, a N & N
Consultoria, para conceder um "empréstimo" de 10 milhões de euros. Na
época, a N & N não tinha nenhum funcionário e nenhum centavo de
capital social. Alguns dias depois, o então presidente do Santos
escreveu uma carta em que encurtava o contrato de Neymar para julho de
2014, quando ele se tornaria free agent, ou seja, não precisaria pagar
mais nada ao Santos nem aos detentores de seu passe. Coincidentemente, a
mesma data acertada com o Barcelona para a transferência do atacante ao
clube. O dinheiro saiu, sem avalista nem garantia, no dia 15 de
fevereiro do ano seguinte. Não só jamais foi pago como, a título de
"indenização", a N & N recebeu outros 30 milhões de euros, por outro
contrato, pagos em 2013 e 2014. Para o Ministério Público, nunca houve
empréstimo ou indenização, mas apenas uma "mera simulação" para esconder
um adiantamento do Barcelona ao jogador a fim de garantir a sua
transferência dali a três anos.
Ouvido em depoimento pelo procurador, o
pai de Neymar foi de uma sinceridade ausente do futebol desde os tempos
em que os jogadores davam entrevistas sem treinamento de especialistas
para repetir que "o grupo está unido" e "nosso principal objetivo é sair
daqui com os 3 pontos". Explicou Neymar pai: "Sabe o que o Barcelona
está fazendo agora? O Barcelona ficou dois anos sem poder contratar
(punido pela Fifa por negociar jogadores menores de 18 anos). Sabe qual a
gerência que eles estão estudando? A nossa". E continuou: "É só não
registrar, não tem problema. Eu não registro, mas eu posso fazer um
contrato e executo lá na frente". O arremate vem em seguida: "Você quer
esse moleque? Não, só entrego daqui a dois anos. Adianta uns '10 milhão
aí', como a título de empréstimo, legaliza". A jogada tinha tudo para
ser um golaço, mas pode se transformar na maior bola fora da carreira do
craque. E quem sabe ajudar a limpar um dos últimos campos onde a
corrupção ainda corre solta, os gramados de futebol.
Com reportagem de Pieter Zalis
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