Marco Aurélio Nogueira
‘Militarização’ coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente
[Excelente matéria, porém, defende posições que se fossem consideradas e implantadas implicaria em cassar do presidente da República o direito, a competência, que a tão falada (especialmente, quando é usada e/ou interpretada contra o governo) 'constituição cidadã' confere ao Presidente da República = a escolha de seus auxiliares.]
E eis que, sem maior alvoroço, os militares voltaram a ter importante
peso político no Brasil. Passaram a dominar o Palácio do Planalto, onde
fica o presidente, ele também um ex-militar. Vários generais e um
almirante ocupam da Casa Civil à Vice-Presidência da República. O gabinete fardado está sendo analisado como um freio ao extremismo
histriônico da ala ideológica do governo, formatada pelo olavismo. O
fato poderia ser visto como uma oportunidade para que se imprima um novo
estilo de atuação ao governo, reduzindo seu sectarismo e sua visão
obnubilada da realidade. Um estilo mais frio não daria trela às
baixarias dos ideólogos.
Nessa avaliação, o novo gabinete poderia funcionar como um freio de
arrumação, que acomodaria as melancias que o governo deixa chacoalhar na
carroceria. Ajudaria a reduzir o destempero presidencial. [externamos nosso entendimento que a palavra melancias, nada tem a ver com o sentido usado para indicar militar comunista - verde por fora, vermelho por dentro.
Os militares aos quais o artigo se refere certamente não foram contaminados pelo vírus do comunismo - mais mortal, nojento, repugnante que o coronavírus.] Formar-se-ia
um colegiado decisório que, apoiado na hierarquia militar e na cultura
da caserna, faria um contraponto às manifestações bélicas do
bolsonarismo. Afinal, em tempos de paz é mais importante saber guardar e
reforçar posições do que atacar, sobretudo se os inimigos são
imaginários.
Tudo isso a se ver. Antes de tudo será preciso descobrir se os oficiais
têm um plano para recuperar a imagem do governo, se atuarão como fator
de equilíbrio ou se darão um cheque em branco ao presidente Jair
Bolsonaro, estimulando suas intervenções desqualificadas. Aconteceu algo
assim com o general Heleno, no início visto como “moderador”, mas que
logo se revelou um ativista do bolsonarismo, um “incendiário”.
A Casa Civil está com o general Braga Netto, militar experiente. Órgão
estratégico, dele depende a coordenação governamental e a organização de
um ambiente favorável no Congresso. Militares são, como todos os
cidadãos, seres políticos qualificados para pensar o Estado, a
comunidade política. Fazem isso, porém, com uma sólida ideia de lealdade
e uma forte carga corporativa, que os impulsiona a verem a si próprios
como diferentes dos demais e com interesses que precisariam ser
defendidos a ferro e fogo. São treinados para “desconfiar” dos
políticos, não para fazer política.
Se não tiver jogo de cintura, um general na Casa Civil pode dificultar
ainda mais as relações entre o Executivo e o Legislativo. Pode, também,
aprofundar a inserção das Forças Armadas no governo, com o risco de que
terminem por trocar o perfil técnico e a missão institucional de
proteger o Estado pela gestão dos negócios governamentais e pelos
conflitos políticos a eles inerentes. Militares num governo autoritário,
como é o de Bolsonaro, não beneficiam a imagem de isenção democrática
das Forças Armadas. É algo que as lança no olho do furacão, ainda que
sejam apenas alguns oficiais a assumir o encargo.
Um governo com uma ala militar ativa pode transitar em campo minado.
Como observou o sociólogo Rodrigo Prando, em caso de rompimento com os
militares o governo poderia ver-se numa crise de desfecho imprevisível.
Militares sabem ocupar territórios, mas não necessariamente estão
preparados para dialogar, mover-se entre ideias plurais e pressões
típicas do mundo político.
No Brasil as Forças Armadas são vistas como patrióticas, disciplinadas e
“desinteressadas”. Mas carregam o fardo do golpismo e do autoritarismo.
Acreditam que os militares existem para salvar o País. É provável que
os oficiais mais jovens não compartilhem esse fardo. A caserna, porém, é
mais ampla. Seja como for, já estão dadas as condições para que as
Forças Armadas contenham os seus impulsos históricos e atuem
democraticamente.
A presença militar tenderá a incentivar uma postura focada em resultados
estruturais, alheios ao jogo eleitoral. É onde repousa o risco de
atrito com a política. Também terá de se haver com as resistências do
núcleo civil do governo. A “militarização” coincide com o comportamento
autoritário e debochado do presidente, com seu familismo exacerbado. É
difícil imaginar que Bolsonaro adote uma conduta mais digna e educada,
mais criteriosa com as políticas estratégicas e os interesses nacionais.
A questão não é de espaço e poder de pressão, mas de biografia, estilo e
modo de pensar.
Deveria ser constrangedor, para a ética militar, que as grosserias,
ofensas e aberrações do presidente estejam a ser cometidas nas barbas
dos oficiais que integram o núcleo principal do governo. Militares
costumam ser discretos, falam pouco, cuidam da linguagem. Não deveriam
lavar as mãos diante dos descalabros que jogam a Presidência da
República num poço sujo e sem fundo.
O gabinete fardado dará força à tecnocracia? Vai depender, também, da
capacidade que tiverem os políticos de equilibrar a balança. O Congresso
tem contrastado a falta de iniciativa do Executivo no que tange às
reformas e à formulação de políticas públicas. Se calibrar bem a sua
atuação e reunir as forças democráticas de oposição, o Congresso poderá
ajudar a que se organize uma agenda nacional e se modifique a orientação
de uma população que acredita que a saída está fora da política e longe
do Parlamento.
Marco Aurélio Nogueira, professor - Opinião - Estado de S. Paulo