O Estado de S.Paulo
Na desordem institucional, Bolsonaro sente mais oportunidades do que perigos
Não há dúvidas de que Jair Bolsonaro é um personagem político
transparente. Goste-se ou não, ele não esconde de ninguém o que percebe
como sendo a realidade política à sua volta. O que permite antecipar com
razoável segurança como ele vai proceder.
Cada ser humano tem no fundo da sua alma uma pequena história sobre si
mesmo, e a que Bolsonaro acalenta está bem condensada no vídeo que –
segundo ele – quis compartilhar durante o carnaval apenas com alguns
amigos. É a saga do homem que sobreviveu à facada, graças a um milagre
produzido para que possa levar o povo a algo como uma terra prometida.
Adversários da sua missão são “os políticos de sempre” (texto que
acompanha o tal vídeo). Aqueles que, na percepção que Bolsonaro tem da
realidade, se uniram no Congresso não só para chantagear o governo, mas,
principalmente, no incansável esforço de levar o desprotegido
presidente a cometer erros pelos quais possa ser alvo de impeachment.
Um erro óbvio Bolsonaro tratou de contornar ao dizer que era de natureza
exclusivamente privada o compartilhamento do vídeo conclamando o
público a participar de uma manifestação convocada por seus seguidores –
mas não explicitamente por ele – para atacar o Poder Legislativo.
“Oficialmente”, o chefe do Poder Executivo não está chamando ninguém a
acuar, atacar ou destruir um outro Poder da ordem constitucional
brasileira. [A clareza impõe destacar:
em nenhum momento, em nenhum trecho, os vídeos convidando para a manifestação, ou o compartilhamento efetuado pelo Presidente da República, citam o CONGRESSO NACIONAL (Poder Legislativo) ou o STF (Poder Judiciário), mencionado apenas acontecimentos do governo do Presidente Bolsonaro, e com o próprio, e que justificam o ato público de apoio ao Chefe do Poder Executivo.
Qualquer interpretação é fruto do entendimento do intérprete de que a atuação dos Poderes Judiciário e Legislativo justificam uma manifestação contra os dois poderes.]
Mas, por ser Bolsonaro tão transparente, ninguém no mundo político
brasileiro acredita que o presidente pense ou sinta diferente do que o
vídeo expõe. Nesse ponto, a pergunta é se funciona a tática política da
convocação das ruas para se libertar da “incessante chantagem”, isto é,
do Congresso. Intuitivo como é e, ao mesmo tempo, disperso, errático e
desconfiado de qualquer um fora do mais íntimo círculo familiar,
Bolsonaro talvez tenha “sentido” que, em 14 meses de governo, o
Legislativo de fato o cercou – enquanto sua dependência do Judiciário só
aumentou por variadas razões, algumas familiares.
De novo, por ser tão transparente, Bolsonaro demonstra que não age
seguindo um rumo estratégico (a não ser o de ganhar a reeleição) e que
tanto suas convicções no campo da economia quanto sua postura no da
política obedecem ao que ele percebe como momento mais imediato. É um
tipo de conduta que funcionou no curto espaço de tempo de uma campanha
eleitoral.
Desde Sarney, todos os chefes do Executivo brasileiro conheciam muito
bem (a exceção é Dilma) as entranhas do Legislativo sem a menor ilusão
sobre sua composição nem como os interesses mais diversos (lícitos e
ilícitos) ali se organizam. Mas só Bolsonaro lida com o sistema de
governo que vem desde 88, numa era marcada pelo descrédito de parte
relevante da chamada “mídia tradicional”, dentro da grande disrupção
política e o forte abalo de todas as instituições.
É o ponto no qual a percepção da realidade transmitida pelo transparente
Bolsonaro evidencia uma disposição ao risco que não é resultado de
cálculo ou frio raciocínio político. Esse apetite pelo risco vem em boa
parte da noção de que milhões de seguidores em mídias sociais possam ser
manobrados em efetivo apoio nas ruas contra instituições (como
Congresso e STF) que os sentidos do presidente identificam como
adversárias. E – este é o aspecto central – que a bagunça institucional
daí resultante traria mais oportunidades do que perigos.
A área militar, tão cara a Bolsonaro, tradicionalmente inspira o
vocabulário da política. A Napoleão Bonaparte, um dos maiores gênios
nesse campo, atribui-se uma frase muito citada. Indagado como fazia para
vencer batalhas, ele teria dito: “On s’engage et puis on voit” – “a
gente se engaja (na luta) e depois vê”. Ou, na moderna linguagem militar
no Planalto: “Foda-se”.
Mas Napoleão sempre tinha um plano.
William Waack, jornalista - O Estado de S. Paulo