Editorial - O Estado de S. Paulo
Não deixa de ser estranho que o STF tenha de dizer o óbvio, mas, nos tempos atuais, até o mais cristalino direito necessita ser lembrado.
[a decisão do
ministro Toffoli coloca um 'freio', ainda que parcial na indústria de
vazamentos;
hoje o
absurdo é tamanho que nada impede que um funcionário de um banco no qual uma
autoridade mantenha sua movimentação bancária - seja o presidente do Supremo, o
da República, a Procuradora-geral, o presidente de uma das Casas legislativa -
decida simplesmente divulgar toda a movimentação financeira daquela autoridade,
dos últimos meses, repasse para um órgão de imprensa e este, abrigado sob o
manto da liberdade da imprensa, divulgue tudo e nada possa ser adotado para
impedi-lo.
O bancário da
hipótese pode até ser punido, mas, a divulgação não pode sequer ser impedida.]
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF),
ministro Dias Toffoli, determinou a suspensão da tramitação de todos os
processos judiciais em andamento no território nacional que versem sobre o
compartilhamento, sem autorização judicial e para fins penais, de dados fiscais
e bancários de contribuintes. Trata-se de uma medida elementar de respeito
ao Direito. Protegidos sob sigilo, os dados bancários e fiscais não podem
ser compartilhados com o Ministério Público sem autorização judicial. [notem que na ação que motivou a decisão o compartilhamento
não foi só entre COAF x Receita e MP estadual, via vazamento, também
ocorreu com a imprensa.]
Também foram suspensos, pela decisão do presidente
do STF, os inquéritos e os procedimentos de
investigação criminal conduzidos pelos Ministérios Públicos Federal e Estaduais
que foram instaurados sem a supervisão do Poder Judiciário e
nos quais houve compartilhamento, sem autorização judicial, de dados da Receita, do Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf) e do Banco Central. A decisão foi proferida num
Recurso Extraordinário, com repercussão geral reconhecida, que avalia a constitucionalidade do compartilhamento de dados da
Receita, do Coaf e do Banco Central com o Ministério Público. No caso, o
Tribunal Regional Federal da 3.ª Região declarou nula uma ação penal sob
o fundamento de que a prova apresentada pelo Ministério Público baseava-se
exclusivamente em informações sigilosas da Receita Federal, compartilhadas com
o Ministério Público sem a devida autorização da Justiça.
Não deixa de ser estranho que a Corte Constitucional tenha de ser acionada para dizer o
óbvio.
Num Estado Democrático de Direito, a quebra de sigilo bancário e fiscal para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal depende de prévia
autorização judicial. No entanto, deve-se reconhecer que, nos tempos atuais,
até o mais cristalino direito necessita ser lembrado e protegido. Com pequenas
e não tão pequenas concessões ao longo do tempo, o que era límpido se torna,
aos olhos de alguns, nebuloso.
A relativização do sigilo promovida pelo Ministério
Público remete a um caso já julgado pelo STF. Em 2016, o Supremo
entendeu, por maioria de votos, que era constitucional a permissão, dada
pela Lei Complementar 105/2001, para que a Receita Federal recebesse,
sem prévia autorização judicial, dados bancários de contribuintes fornecidos
diretamente pelos bancos. O entendimento majoritário
foi de que essa autorização legal não representava quebra de sigilo. Seria tão somente uma transferência do sigilo da órbita
bancária para a fiscal, e os dados permaneceriam protegidos contra o
acesso de terceiros. Uma vez que a Receita continuaria com o dever de
preservar o sigilo, não haveria ofensa às garantias constitucionais de
proteção da privacidade.
Ainda que seja questionável, a interpretação do Supremo Tribunal Federal de modo algum permitiu o
acesso direto do Ministério Público a dados sigilosos para fins penais. Vale
lembrar que o Supremo, ao fixar as garantias dessa comunicação de dados com o Fisco, indicou a necessidade de “prévia notificação do contribuinte quanto a instauração do
processo e a todos os demais atos”. Além disso, a própria Lei
Complementar 105/2001 estabeleceu que eventuais informações dos bancos ao Fisco
“restringir-se-ão a informes relacionados
com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais
mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita
identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados”. Não
poderia ser diferente, pois a lei veio regulamentar – e não abolir – o
sigilo das operações financeiras.
É grave que o Ministério Público,
instituição responsável pela defesa da ordem jurídica, opte por percorrer caminhos
que violam o sigilo bancário e fiscal. As investigações devem ser feitas
dentro da lei, que prevê modos de acessar dados financeiros e fiscais, sempre
mediante autorização judicial. O sigilo bancário e fiscal é uma garantia
constitucional, que deve valer para todos, sem exceções.
Opinião - O Estado de S. Paulo