Eloísa Machado de Almeida
Supremo julga hoje questão que pode anular caso Queiroz e mais 934 - Não se alcança Estado de Direito com menos garantias ou com superpoderes à acusação
O STF (Supremo Tribunal Federal) deverá analisar se é constitucional o compartilhamento, sem autorização prévia do Poder Judiciário, de dados bancários e fiscais do contribuinte com o Ministério Público, para que este inicie ou instrua investigações criminais. Estão em jogo não só a conformação do direito constitucional à privacidade de informações e dados dos contribuintes, isto é, o alcance da proteção dada aos sigilos bancário e fiscal, como também a delimitação dos poderes dados ao Ministério Público na persecução criminal, tendo em vista as exigências constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.
O recurso que definirá o alcance do sigilo bancário e fiscal tem
repercussão geral declarada desde junho de 2018. A suspensão de todas as
ações penais e inquéritos que se valeram das informações fiscais e
bancárias só foi determinada pelo ministro relator e presidente do
Supremo, Dias Toffoli, um ano depois, por provocação de Flávio
Bolsonaro, no ápice de um escândalo político. Após isso, o caso esquentou. Assistiu-se a uma série de decisões que
ampliaram o objeto da ação, criando um embate entre Ministério Público,
Supremo, Unidade de Inteligência Fiscal (UIF, o extinto Coaf), Receita
Federal e Banco Central.
Mas a ação se refere a questões simples. Afinal, o que pode fazer o
Estado acusador? Qual é o papel do Judiciário no combate ao crime? Essa pergunta vem sendo respondida reiteradamente pelo Supremo Tribunal Federal e pelos demais juízes e tribunais do país. Apenas no âmbito da Operação Lava Jato, por exemplo, o Supremo decidiu
que conduções coercitivas são inconstitucionais, que interceptações
telefônicas não podem ser divulgadas, que a defesa deve ter oportunidade
de se manifestar após réus delatores, que os termos de colaboração
premiada podem ser negociados pela Polícia e pelo Ministério Público,
que a suspensão judicial de mandato parlamentar deve passar pelo crivo
político, que a prisão provisória é exceção e que a execução da pena
antes do trânsito em julgado da condenação é inconstitucional. Isso sem
mencionar os casos que o Supremo ainda julgará sobre os limites da
relação entre acusação e juiz.
Todas estas questões se referem a direitos e garantias fundamentais
constitucionais e é papel do Supremo Tribunal Federal decidir sobre
elas, sobretudo num momento em que se alimenta a falsa e equivocada
ideia de que as garantias processuais penais são um obstáculo para ações
de combate à corrupção quando, em verdade, jogar segundo as regras é o
que garante a legitimidade do resultado.
Entretanto, ainda que sejam decisões que se refiram a todas as pessoas, elas foram contaminadas por um processo de fulanização.
A prisão após condenação em segunda instância se tornou “o caso Lula”, a
revisão política de suspensão de mandatos se tornou “o caso Aécio
Neves”, a ordem de alegações finais entre réus delatores e delatados se
tornou “o caso Bendine” e, agora, a questão sobre sigilo bancário e
compartilhamento de informações diretamente com o Ministério Público se
tornou “o caso Flávio Bolsonaro”. A fulanização alimenta a percepção de que o tribunal se movimenta
preponderantemente por razões outras que não jurídicas,
instrumentalizando o direito e a essencial função de guarda da
Constituição às conveniências dos ventos políticos.
Tem, também, uma face mais perversa: a construção de um inimigo público,
contra quem é aceitável desrespeitar as regras. [todo criminoso, em qualquer país, é um inimigo público - especialmente os com a condenação confirmada e terceira instância = STJ.] Essa lógica tem sido
usada na retórica da Operação Lava Jato que, a cada decisão do Supremo,
sai a divulgar listas de réus ilustres que seriam beneficiados pela
decisão ou pela lei. É um reflexo, no andar de cima, de como a Justiça
lida com a maior parte dos acusados de crimes no país: como inimigos.
A qualidade de um Estado de Direito pode ser medida pela capacidade de
aplicar a lei a todos, indistintamente, sem beneficiar, sem prejudicar.
Não se alcança Estado de Direito com menos garantias ou com superpoderes
à acusação, tampouco com uma Justiça de fulanização.
Eloísa Machado de Almeida, professora FGV - Folha de S. Paulo