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domingo, 26 de março de 2017

A grande história de Tancredo Neves

Olhando-se para o enrosco da política de hoje, sente-se a falta que faz um Tancredo. O que ele faria? Sabe-se lá, mas ele saberia

Nas próximas semanas chegará às livrarias “Tancredo Neves, o príncipe civil”, do repórter Plínio Fraga. Uma biografia daquele mineiro miúdo, culto e conciliador é sempre algo mais do que uma visita ao passado. É também uma iluminação para o presente. Tancredo Neves (1910-1985) foi eleito presidente da República, adoeceu e só entrou no Planalto morto.
Arquiteto da grande conciliação de 1984, a única que partiu da oposição, Tancredo, um civil, foi a maior das figuras políticas do período em que o Brasil era governado por generais. Olhando-se para o enrosco da política de hoje, sente-se a falta que faz um Tancredo. O que ele faria? Sabe-se lá, mas ele saberia. Plínio Fraga reconstruiu a figura do político conservador que viveu numa oposição legal que abrigava a esquerda, o democrata intransigente, conciliador com lances de inesperada inflexibilidade. Depois da grande campanha pelas eleições diretas, ele se elegeu presidente pelo sistema indireto. O livro de Fraga mostra, aos poucos, como ele operava essa mistura.

O menino Tancredo teve um pajem, o negro Custódio, neto da cozinheira dos Neves, que continuou com a família depois da Abolição. Custódio ficou com os Neves até morrer, aos 90 anos, anexando o sobrenome dos velhos senhores. Sabendo-se disso, conhece-se a alma patriarcal de Tancredo. Fraga revirou arquivos da família, do Departamento de Estado e do Serviço Nacional de Informações, entrevistou dezenas de pessoas e produziu um cartapácio de 648 páginas, dividido em capítulos curtos.

Um trabalho desse tamanho carrega sempre imprecisões, felizmente pouco relevantes.
Juarez Távora não combateu com a Força Expedicionária Brasileira, e na fotografia da posse de Tancredo como ministro da Justiça, em 1953, o chefe da Casa Civil Lourival Fontes está na legenda, mas não está na cena.  “O príncipe civil” faz revelações relevantes de fatos que sempre circularam à boca pequena no andar de cima, desde que não fossem contados à turma de baixo. Segredos que os Polichinelos administraram por mais de 30 anos.

Fraga expôs a caixa da campanha de Tancredo. Maluf, seu adversário, era acusado de ser “o candidato do milhão.” A caixa de Tancredo foi gorda, abastecida por dezenas de endinheirados, entre eles o empreiteiro Sebastião Camargo e o industrial Jorge Gerdau.
Na equipe de coletores estiveram os empresários Sérgio Quintella e João Pedro Gouvêa Vieira, mais Tancredo Augusto, filho do próprio candidato, e José Hugo Castello Branco, que viria a ser chefe da Casa Civil do novo governo. Lá estava também o banqueiro Ronaldo Cezar Coelho, que hoje é freguês da Lava-Jato.

Estima-se que a caixa de Tancredo tenha amealhado o equivalente a US$ 45 milhões em dinheiro de hoje. A maior parte desse dinheiro foi gasta. Talvez tenham sobrado uns US$ 10 milhões. Cadê? Teriam ido para instituições de caridade ou para Risoleta, viúva de Tancredo.  “Conversa fiada”, disse Tancredo Augusto a Plínio Fraga. Ele acrescenta, referindo-se a um depositário das “sobras”: “Filho da puta.”

Uma pessoa devolveu um cheque dessa caixa. Foi Antônia Gonçalves de Araújo, a poderosa secretária de Tancredo. Essa é a segunda exposição de Fraga.  “Dona Antônia”, uma bonita morena, era funcionária do Congresso quando conheceu Tancredo em 1971. Ela tinha 38 anos, ele 61. A relação dos dois durou até 1985. Foi um romance diferente daqueles que Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Fernando Henrique Cardoso tiveram fora de seus casamentos.

“Dona Antônia” era também a chefe de gabinete do “Doutor Tancredo” e, por alguns meses, foi a mulher mais poderosa da República. Mencionar seu nome demonstrava prestígio, revelar sua condição, suicídio. Fraga entrevistou “Dona Antônia”. Aos 84 anos, ela tem na parede de sua sala o ato de Tancredo nomeando-a secretária do presidente da República.  Antônia fala ao longo de sete páginas emocionantes, sobretudo quando conta como conseguiu entrar no hospital, à sorrelfa, para se despedir de Tancredo.

Fonte: Elio Gaspari, jornalista - O Globo