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quinta-feira, 14 de julho de 2016

Drama de fronteira

O governo acaba de criar um comitê específico para tentar pôr ordem nas fronteiras brasileiras. Trata-se de uma resposta às críticas do TCU, que expôs o problema há poucos meses numa avaliação devastadora. Tomar conta das fronteiras brasileiras é uma tarefa dificílima. A faixa de 17 mil quilômetros de extensão terrestre envolve quase 600 municípios e dez países vizinhos. O fluxo estimado de contrabando e pirataria está na casa de R$ 100 bilhões, uma conta na qual nem sequer entram o tráfico de drogas e de armas de fogo, a prostituição, a posse ilegal de terras e o trabalho escravo. Numa área de mais de 2 milhões de quilômetros quadrados, estabelecer comando e controle demandaria algo análogo a uma enorme operação de guerra.

O relatório do TCU revela o drama. O chamado "Plano Estratégico de Fronteiras" de 2011 não é plano nem é estratégico. Seus objetivos são confusos ou contraditórios, os processos opacos e a sincronização entre as 13 instâncias do governo quase inexistente. Não há prioridades claras nem divisão clara de tarefas. Os organismos envolvidos carecem de pessoal, recursos e autoridade para atuar. Além de disfuncional, o TCU aponta que a gestão da faixa de fronteira é anacrônica. Toma como premissa a ideia falsa segundo a qual seria possível "blindar" ou "fechar" a fronteira. Ignora a necessidade imperiosa de envolver as populações locais para garantir o êxito da política, e desconhece o fato de que, na prática, é impossível encontrar soluções exclusivamente nacionais para problemas transfronteiriços.

O TCU não para por aí. Numa outra auditoria, avalia o programa piloto do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras do Comando do Exército (Sisfron). O tribunal encontra problemas graves de concepção e gestão, além de fazer um alerta: orçada em R$ 12 bilhões, a iniciativa corre o risco de repetir os mesmos erros do sistema de monitoramento da Amazônia (Sivam).

O próprio Temer reconhece o problema, mas ninguém no governo tem uma fórmula para resolvê-lo. Quem buscar soluções ainda enfrentará a poderosa resistência das redes criminais que atuam em prefeituras da fronteira, têm voz em governos estaduais e se fazem representar no Parlamento. Também terá uma batalha ladeira acima para obter o apoio de empresários do setor agrícola e de seus fornecedores, que convivem com a situação no terreno. Difícil achar alguém disposto para a empreitada.

Duzentos anos depois da independência e um século após a consolidação de seu território, o Brasil volta a ter na faixa de fronteira o problema mais pernicioso de sua política externa.


Fonte: Matias Spektor - Folha de S. Paulo
 
 

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

O diário de um monarca



Fernando Henrique Cardoso gravava suas confidências para o futuro na condição de observador e protagonista
Os trechos do diário do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso publicados na última edição da revista “Piauí” são uma aula de vida, política e história. Mostram suas alegrias e ansiedades entre novembro de 1995 e abril do ano seguinte. Retratam um país que, visto do trono, parece ter mudado pouco. Visto da rua, mudou muito, em grande parte graças a ele. FHC conviveu com escândalos, teve medo de CPI, lidou com um PMDB rebelde, loteou ministérios, ouviu a maldita palavra “impeachment” e, por fim, aturou a imprensa fofoqueira.

Há duas semanas FHC disse que a doutora Dilma “vai fazer um pacto com o demônio o tempo todo”. No dia 25 de abril de 1996, ele ouviu de Dorothea Werneck, a ministra da Indústria e Comércio que dispensara para abrigar um acerto partidário, que “estamos fazendo um pacto com o diabo”. Nessa penosa conversa, ambos choraram. “Fui ficando com raiva de mim mesmo”, registrou horas depois.

Dois presidentes mantiveram diários. Getúlio Vargas falava consigo mesmo, com magistral precisão e sinceridade. Juscelino Kubitschek, proscrito pela ditadura, listava prazeres e penares pessoais. Fernando Henrique Cardoso escreveu para ser lido, como se à meia-noite ligasse o gravador, jogando confidências ao futuro. Foi ao mesmo tempo protagonista e observador. Um negociava ministérios, o outro sentia “o travo amargo do poder, no seu aspecto mais podre do toma lá dá cá”. Reconhecia, contudo, que “este é o Brasil de hoje, onde a modernização se faz com a podridão, a velharia”.

No período publicado pela “Piauí”, FHC vivia a primeira grande crise de seu governo. Sua maior realização, o Plano Real, tinha pouco mais de um ano, e o sistema financeiro estava em crise. Haviam quebrado os bancos Econômico e Nacional. Uma pasta encontrada no arquivo do dono do Econômico revelava pela primeira vez o esquema de financiamento ilegal de campanhas eleitorais (dos outros) pela banca. Se isso fosse pouco, o presidente do Incra, ex-chefe do seu gabinete pessoal, fora apanhado com gravações dos telefones do chefe do cerimonial do Planalto, metido em conversas impróprias sobre a compra de um sistema de vigilância eletrônica para a Amazônia. FHC dizia que “democracia não é fazer chacina pública”. Queixava-se para o diário do que seriam “fofocas”, mas reconhecia que “cai lama no governo”. Caíram todos os envolvidos, inclusive o ministro da Aeronáutica. Escrevendo em 1995, FHC parece falar para a doutora Dilma de 2015: “Estou cansado de ser, digamos, atacado por força dos meus amigos do círculo íntimo. Esse círculo íntimo tem que ser quebrado. Tenho que nomear alguém no palácio que não pertença a ele”.

No Brasil de 2015 brilhou sua revelação de que se recusou a nomear Eduardo Cunha para uma diretoria da Petrobras. Tudo bem, mas a empresa continuou presidida por Joel Rennó, de quem só se livraria mais tarde, nomeando um substituto exemplar. Passados 20 anos, no Brasil de hoje, FHC dedica obsequioso silêncio à contabilidade financeira do atual presidente da Câmara.

Lutando para impedir uma CPI, diante do boato de que um banqueiro ameaçava contar tudo o que sabia sobre campanhas eleitorais, advertiu: “Esta gente está brincando com fogo”.

Fonte: Elio Gaspari é jornalista