Fernando
Henrique Cardoso gravava suas confidências para o futuro na condição de
observador e protagonista
Os
trechos do diário do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso publicados na
última edição da revista “Piauí” são
uma aula de vida, política e história. Mostram suas alegrias e ansiedades entre
novembro de 1995 e abril do ano seguinte. Retratam um país que, visto do trono,
parece ter mudado pouco. Visto da rua, mudou muito, em grande parte graças a
ele. FHC conviveu com escândalos, teve medo de CPI, lidou
com um PMDB rebelde, loteou ministérios, ouviu a maldita palavra “impeachment”
e, por fim, aturou a imprensa fofoqueira.
Há duas
semanas FHC disse que a doutora Dilma
“vai fazer um pacto com o demônio o tempo todo”. No dia 25 de abril de
1996, ele ouviu de Dorothea Werneck, a ministra da Indústria e Comércio que
dispensara para abrigar um acerto partidário, que “estamos fazendo um pacto com o diabo”. Nessa penosa conversa,
ambos choraram. “Fui ficando com raiva de
mim mesmo”, registrou horas depois.
Dois presidentes mantiveram
diários. Getúlio Vargas falava consigo mesmo, com magistral precisão e sinceridade. Juscelino Kubitschek, proscrito pela
ditadura, listava prazeres e penares pessoais. Fernando Henrique Cardoso escreveu
para ser lido, como se à meia-noite ligasse o gravador, jogando confidências ao
futuro. Foi ao mesmo tempo protagonista e observador. Um negociava ministérios,
o outro sentia “o travo amargo do poder,
no seu aspecto mais podre do toma lá dá cá”. Reconhecia, contudo, que “este é o Brasil de hoje, onde a
modernização se faz com a podridão, a velharia”.
No
período publicado pela “Piauí”, FHC vivia a primeira grande crise de seu
governo. Sua maior realização, o Plano Real, tinha
pouco mais de um ano, e o sistema financeiro estava em crise. Haviam quebrado
os bancos Econômico e Nacional. Uma pasta encontrada no arquivo do dono
do Econômico revelava pela primeira vez o esquema de financiamento ilegal de
campanhas eleitorais (dos outros)
pela banca. Se isso fosse pouco, o presidente do Incra,
ex-chefe do seu gabinete pessoal, fora apanhado com gravações dos telefones do
chefe do cerimonial do Planalto, metido em conversas impróprias sobre a
compra de um sistema de vigilância eletrônica para a Amazônia. FHC dizia que “democracia não é fazer chacina pública”.
Queixava-se para o diário do que seriam “fofocas”,
mas reconhecia que “cai lama no
governo”. Caíram todos os envolvidos, inclusive o ministro da Aeronáutica.
Escrevendo em 1995, FHC parece falar para a doutora Dilma de 2015: “Estou
cansado de ser, digamos, atacado por força dos meus amigos do círculo íntimo.
Esse círculo íntimo tem que ser quebrado. Tenho que nomear alguém no palácio
que não pertença a ele”.
No Brasil
de 2015 brilhou sua revelação de que se recusou a nomear Eduardo Cunha para uma
diretoria da Petrobras. Tudo bem, mas a empresa continuou presidida por Joel
Rennó, de quem só se livraria mais tarde, nomeando um substituto exemplar.
Passados 20 anos, no Brasil de hoje, FHC
dedica obsequioso silêncio à contabilidade financeira do atual presidente da
Câmara.
Lutando
para impedir uma CPI, diante do boato de que um banqueiro ameaçava contar tudo
o que sabia sobre campanhas eleitorais, advertiu: “Esta gente está brincando com fogo”.
Fonte:
Elio Gaspari é jornalista
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