Malu Delgado
Vidas, 'transtornos' e canos fumegantes
O papel de um governante é evitar "transtornos para a sociedade",
segundo ensinamento do governador do Rio, Wilson Witzel, postado no
Twitter minutos depois de ele descer efusivo de um helicóptero, na ponte
Rio-Niterói, com o punho erguido em sinal de vitória. Tudo registrado
em tempo real por um assessor que seguia os pulinhos frenéticos do
chefe, filmando o momento épico com um celular. O transtorno, que
impediu o trânsito nas duas vias da ponte, por quase quatro horas, era
um jovem de 20 anos que sequestrou um ônibus com 37 passageiros. Um
bandido, no vocábulo usual da família Bolsonaro, ou um "homem mau", de
acordo com a definição bíblica do ministro da Educação, Abraham
Weintraub, que citou provérbios sobre os "gritos de alegria" da cidade
quando os ímpios perecem, ou, como no caso em questão, morrem.
Os cidadãos (os brasileiros de bem, os cidadãos ordeiros, ainda
parafraseando os filhos do presidente) que tiveram o curso normal da
vida interrompido por algumas horas, impedidos de ir e vir (esse
transtorno!), aplaudiram e reagiram com entusiasmo semelhante ao do
governador Witzel quando ouviram os tiros disparados por um sniper,
derrubando o sequestrador no momento em que ele havia descido do ônibus.
Antes, num tenso processo de negociação conduzido pela polícia, seis
reféns tinham sido libertados. Soube-se logo depois da morte celebrada pelos políticos - in loco ou em
exultantes comentários nas redes sociais - que o sequestrador portava
uma pistola de brinquedo e gasolina numa garrafa pet, além de estar em
aparente surto psicótico. [detalhe: a maior parte dos passageiros não percebeu ser a pistola de brinquedo, assim, o medo causado foi real e a gasolina era real - imagina jogas gasolina chão de um ônibus, com 36 pessoas, e atear fogo - alguém escaparia?
o 'surto psicótico' pode ser uma atenuante, mas, naquele momento era um ponto a exigir uma solução rápida para neutralizar o sequestrador, já que suas decisões não eram previsíveis, nem mesmo por ele.
Assim, a solução adotada foi a melhor - apesar da matéria deixar a impressão de que a vida do sequestrador tinha mais valor do que a dos réfens e que todo bandido que tombe 'trabalhando' no Rio, ou mesmo no Brasil, deve ser lamentado - parece que as mortes que não devem ser lamentadas são as de policiais.
A ação foi correta e eventual excesso do governador é é esperado, por ser típico de um político ao ver seu entendimento sob a forma de combater bandidos, apresentar bons resultados.] "O ideal era que todos saíssem vivos, mas
preferimos salvar os reféns", explicou o governador nas redes sociais.
As preferências do governador são suficientemente conhecidas, mas ontem
ele voltou a registrar sua contrariedade com os "entendimentos de que
não podem ser abatidos os criminosos que ostentam armamentos". O
tenente-coronel Maurílio Nunes, coordenador do Bope, afirmou, ao lado do
governador, que 80% dos casos são resolvidos com negociação e há um
claro protocolo internacional, técnico, a ser seguido para respaldar
ações policiais em casos trágicos como o que se viu ontem.
Se a ação foi respaldada por protocolos e se era de fato a única saída
possível para se evitar tragédia maior, caberá aos profissionais
envolvidos fornecer todas as informações com transparência para a
perícia concluir seu trabalho, como afirmou com firmeza o próprio
tenente-coronel Nunes. Coube à polícia sobriedade técnica para discorrer sobre o episódio, num
contraste claro com o discurso que cresce em setores políticos, o da
banalização da vida como política pública. Witzel disse a jornalistas
que "a população aplaudiu, mas não a morte de um ser humano". Admitiu
que não foi capaz de conter a "felicidade", pois 37 vidas foram salvas.
Para que a naturalização da morte não soasse distópica, o governador do
Rio registrou que rezou um Pai-Nosso à vítima e que a mãe do
sequestrador "estava se perguntando onde ela teria errado". Precisamos
todos acreditar que há algum traço de humanidade na mente daqueles que
governam.
De janeiro a junho deste ano, quase 39% das mortes na Grande Niterói
foram causadas por ações policiais, conforme relatório do Observatório
de Segurança do Rio. Na capital, o índice chegou a 38%. Das 1.148 ações
policiais nas ruas realizadas no semestre passado, 568 foram operações e
580 foram patrulhamento. Para os especialistas em segurança pública do
Observatório, as ações policiais no governo Witzel são cada vez "mais
letais e mais assustadoras". As mães das crianças que vivem no Complexo
de Favelas da Maré, que enviaram 1.500 cartinhas e desenhos ao Tribunal
de Justiça do Rio sobre seu cotidiano, certamente não estão se
perguntando onde erraram, mas o que devem fazer para que seus filhos não
vivam sob pânico dos helicópteros "que atiram para baixo e as pessoas
morrem", e como lhes explicar que não constam na lista de preferidos do
governador. [inaceitável que policiais entrem em favelas, ou participem de confrontos com bandidos - em qualquer local do mundo - carregando flores;
os helicópteros precisam atirar para baixo - onde estão os bandidos; as vítimas inocentes das balas perdidas, normalmente, são de projéteis disparados por bandidos que estão no chão contra policiais que adentram as favelas.
- quanto as cartinhas, nada garante que não tenham sido escritas por crianças e moradores sob coação dos traficantes.]
O sociólogo Pablo Nunes, coordenador de Pesquisas da Rede de
Observatórios da Segurança Pública em cinco Estados (RJ, SP, CE, PE,
BA), acompanhou com apreensão o desfecho do sequestro do ônibus. Recebeu
a informação, enquanto o governador dançava na ponte, que helicópteros
da polícia faziam uma operação na Os
pesquisadores buscavam informações com os moradores locais se eram
bombas de efeito moral ou granadas. "O governo Witzel tem se
notabilizado pela contagem de cadáveres", segundo o sociólogo. Se a
celebração da morte por um governador causa assombro, é ainda mais
perturbador assistir aos aplausos da população, admite o sociólogo. Os
brasileiros não suportam mais conviver com o crime e a violência, estão
cansados e com medo, é fato. As palmas legitimam o discurso fácil dos
políticos que faturam com a sensação de medo, mas cujas políticas
públicas atuais, segundo o professor, têm produzido poucos efeitos
práticos e duradouros.
A "anestesia moral" foi fenômeno na Segunda Guerra Mundial estudado por
historiadores, recorda-se Sérgio Adorno, coordenador científico do
Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP: "Quando você não considera o
outro como pertencente à humanidade e, portanto, a vida dele pode ser
manipulada e eliminada, desde que ele seja considerado um inimigo e um
obstáculo à afirmação de suas ideias, que parecem as mais justas e
sublimes. O que se opõe ao poder deve ser liquidado".
A dança de Witzel "é de uma desumanidade chocante", pontua Adorno, num
momento em que o Brasil assiste à erosão de redes de solidariedade,
cooperação e respeito ao direito fundamental à vida. A coreografia "é um
ato de degradação da autoridade". Não se sabe se existe no mercado
antídoto que reverta o estado de anestesia social e também é inútil
pensar se haverá viabilidade para Witzel disputar a Presidência com base
na política do abate humano. Como no pós-guerra, o que resta é a espera
e a melancolia.
Malu Delgado - Política - Valor Econômico
https://www.valor.com.br/politica/6399605/vidas-transtornos-e-canos-fumegantes