Por seu feitio exageradamente minucioso e dirigista, cujo propósito é
regular na prática tudo na vida dos cidadãos, ela terminou por criar um
ambiente de insegurança jurídica permanente, engessar a economia e
dificultar a governabilidade. Além de ter corrompido a democracia, já
que o modelo político esquizofrênico que adotou impede a efetiva
participação da sociedade nas decisões sobre o país — contribuindo, ao
contrário, para perpetuar no poder uma casta oligárquica de políticos
profissionais.
Trata-se, portanto, de um aniversário que não mereceria sequer ser
lembrado, considerando-se a quase unanimidade de críticas aos defeitos
de nascença da Carta, e sobretudo o preço que o país tem pago por eles
em termos de atraso econômico, político e social. A menos que se
aproveite a data para retomar o debate sobre a necessidade de um
arcabouço jurídico alternativo, a partir do diagnóstico dos malefícios
provocados pelo atual. O qual tem sido questionado por uma respeitável
lista de juristas e economistas praticamente desde sua criação. “Com
quimeras e tolices, a Nova República e sua douta Constituinte meteram o
povo brasileiro num trem-bala para Bangladânia”, lamentou à época,
referindo-se à pobreza de Bangladesh e ao isolamento da então socialista
Albânia, o falecido economista Mário Henrique Simonsen (1935-1997), um
dos mais brilhantes de sua geração.
Uma Carta dirigista num momento em que países em desenvolvimento se abriam aos mercados globais
De 1988 para cá, à medida que o tempo escancara a gravidade dos
equívocos da Carta, a advertência de Simonsen sobre “o risco de se optar
pelo atraso”, e sua previsão de que ela poderia “levar o país ao
colapso”, reverberam com cada vez mais força. Apenas dois anos depois,
em 1990, o título de uma coletânea de artigos de notáveis, Constituição de 88: o Avanço do Retrocesso, reforçou
o consenso sobre o espírito retrógrado da Carta, que já nascera
provecta e na contramão da história. Pois optava pelo dirigismo
estatizante e uma plataforma nacional-desenvolvimentista justamente num
momento em que o mundo caminhava na direção oposta.
Sob a liderança de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, os Estados
Unidos e o Reino Unido encerravam o longo domínio das políticas
keynesianas do pós-guerra para destravar suas economias por meio de
privatizações e desregulamentação. Na Ásia, países como Coreia do Sul e
Singapura despontavam como “tigres” do crescimento, ao abraçar o livre
mercado e abrir-se à globalização. E até os gigantes comunistas
começavam a curvar-se aos benefícios do capitalismo, com a liberalização
promovida por Mikhail Gorbachev na União Soviética e por Deng Xiaoping
na China.
Já o Brasil, apenas dois anos antes do desmoronamento dos regimes
comunistas e da Queda do Muro de Berlim, preferiu retomar a agenda
esquerdista e populista da década de 1960, multiplicando encargos e
benefícios trabalhistas de país rico, fechando-se ao capital
estrangeiro, e chegando ao cúmulo de tentar controlar a taxa de juros
por força de lei — essa última excrescência só seria abolida uma década e
meia mais tarde, em 2003. O pensamento dominante entre os
constituintes, como recordou mais tarde o então ministro da Fazenda
Maílson da Nóbrega, guiava-se por uma série de “ismos” já então
comprovadamente ineficientes: “socialismo, marxismo, estatismo,
intervencionismo, patrimonialismo, assistencialismo, corporativismo e
garantismo”.
Em retrospecto, parece difícil acreditar que essa Constituição tenha
sido saudada como “Constituição Cidadã”, termo criado pelo presidente da
Assembleia Constituinte, o falecido deputado Ulysses Guimarães
(1916-1992), no estilo laudatório típico da demagogia da época. “Será
luz, ainda que lamparina, na noite dos desgraçados”, exagerou ele,
abusando da hipérbole. “Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões
sujos, escuros e ignorados da miséria.” Tratava-se, como se viu mais
tarde, de puro ato de ilusionismo, já que não foi possível abolir a
miséria nem promover o desenvolvimento apenas com uma vara de condão
legiferante, como sonharam os constituintes.
Uma generosa coleção de direitos sociais e econômicos, como se o papel fosse capaz de torná-la realidade
Uma combinação heterogênea de perfis, que incluía artistas de
televisão, banqueiros, sindicalistas e ex-guerrilheiros — além de
lobistas e políticos profissionais, como não poderia deixar de ser —, os
eleitos para redigir a nova Constituição espelhavam o ambiente político
exacerbado da época, após o Movimento das Diretas Já e o fim do regime
militar. Trabalharam, nesse sentido, mais olhando para o passado,
visando a contrapor-se à legislação de exceção do período, do que
focalizando o futuro, o que exigiria uma visão estratégica, um projeto
novo de país.
Em clima de happening, preferiram ignorar a referência de
Cartas Magnas consagradas, a exemplo da norte-americana, que se limitam
basicamente às garantias dos direitos civis fundamentais e princípios
gerais, a ser transformados em leis à luz das demandas de cada época. A
pretexto de inovar, inscreveram minuciosamente no texto uma generosa
coleção de direitos sociais e econômicos, como se a Constituição fosse
capaz, por si mesma, de torná-la realidade. Embalados pela utopia de
resgatar a histórica dívida social brasileira, contudo, esqueceram-se de
levar em conta que seria preciso também prover os meios para a
concretização desses direitos. O que pressupõe um ambiente de negócios
propício ao crescimento econômico, muito diferente daquele desenhado
pela Carta, com a infinidade de entraves à atividade empresarial que se
conhece.
Tentou-se, em suma, de forma idealista e nada pragmática, criar um
Estado de bem-estar social incompatível com a capacidade do país, como
reconhece, entre outros, o constitucionalista Gustavo Binenbojm. “O
Brasil precisa compreender que levar direitos a sério significa levar o
problema da escassez de recursos a sério, o que impõe uma série de
escolhas trágicas envolvidas na sua alocação, sem ceder às tentações
populistas e à ilusão fiscal.” O resultado foi um calhamaço com 245 artigos e mais de 400 páginas — a
terceira mais longa Constituição do mundo, segundo o Comparative
Constitutions Project, um estudo comparativo de 180 Cartas, ficando
atrás apenas das da Índia e da Nigéria.
Para piorar as coisas, o igualmente extenso capítulo tributário criou
um intrincado sistema de transferência de recursos da União para
Estados e municípios, que ganharam competência para também arrecadar
tributos. Como a descentralização das receitas não foi acompanhada por
uma diminuição proporcional dos gastos federais, no entanto, o Executivo
lançou mão da criação e majoração de alíquotas de tributos não
partilhados — as famigeradas “contribuições”. Em decorrência, os
brasileiros passaram a carregar o peso de duas camadas de Estado
superpostas, como apontou o economista Eduardo Giannetti de Fonseca em
outro artigo de título sugestivo sobre a Constituição: “Retrato do
fracasso”, publicado em 2013.
Levando em conta que a Carta também impulsionou a proliferação
desenfreada e oportunista de municípios, podemos considerar que se trata
na verdade de três camadas superpostas. Desde 1990, mais de mil
municípios foram criados, na maioria sem condições de bancar as próprias
despesas, mas que foram responsáveis por aumentar, só com suas câmaras
de vereadores, em pelo menos 200 mil o número de servidores públicos
cujo salário é pago pelo contribuinte. Não surpreende que a carga
tributária, que era da ordem de 24% do PIB antes da “Constituição
Cidadã”, tenha explodido para os cerca de 35% de hoje. A Constituição
transformou o Estado brasileiro em um monstro obeso, opressivo e
inoperante.
A Constituição transformou a política no país em um negócio empresarial lucrativo
A disposição dos constituintes para invencionices estendeu-se também,
e com consequências igualmente deletérias, ao modelo político adotado,
um sistema híbrido que mistura características do presidencialismo
norte-americano com as do parlamentarismo da tradição europeia. Criou-se
o malfadado presidencialismo de coalizão, que dificulta a
governabilidade e favorece negociações nem sempre republicanas entre o
Legislativo e o Executivo, na conhecida prática do “é dando que se
recebe”. Cujo exemplo mais escandaloso foi a compra de votos praticada
pelo Partido dos Trabalhadores durante o governo do ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, com pagamento aos parlamentares, em forma de
mesada e dinheiro vivo, na boca do caixa bancário — o infame Mensalão.
Em paralelo, a Constituição de 88 beneficiou políticos e partidos com
tantos privilégios que acabou por transformar a política no país em um
negócio empresarial lucrativo, que raramente tem qualquer relação com os
interesses da população ou o bem comum. Do voto proporcional —
artifício pelo qual a maioria dos brasileiros geralmente não sabe sequer
o nome de quem elegeu — à proibição de candidaturas independentes,
passando pelo foro privilegiado e pela consolidação do Fundo Partidário,
criado durante o regime militar, tudo tem se somado, ao longo das
últimas três décadas, para impedir a efetiva participação e
representatividade da sociedade na política. Haja vista o absoluto
descaso do Congresso com as demandas de mudanças expressas a partir das
manifestações de 2013.
Por essa ótica, a Constituição que nasceu para consagrar a
democracia, e cujo mérito inquestionável foi a garantia dos direitos
civis fundamentais, hoje é vista, paradoxalmente, como falha também
nesse aspecto. Em vez de uma democracia substantiva, fundada na isonomia
de direitos e deveres entre todos os cidadãos, e que extrapola portanto
a mera realização periódica de eleições, deu origem a uma democracia de
fachada, como afirma o jurista Modesto Carvalhosa. “No Brasil, o Estado
é hegemônico, não restando à cidadania nenhum papel em nossa construção
civilizatória. A sociedade civil é dominada por um Estado que se
estruturou para preencher todos os espaços.”
O constitucionalista norte-americano Bruce Ackerman, um dos mais
respeitados do mundo e antigo estudioso da legislação brasileira, vê
nesse descompasso uma das principais causas da crescente frustração da
população com a democracia. E se alinha aos que defendem a convocação de
uma nova Assembleia Constituinte. “Uma vez eleitos, os representantes
deveriam reconsiderar as decisões-chave da Assembleia de 1988 já que
elas, ao longo das décadas, geraram a atual crise de confiança pública”,
justificou em artigo recente. Essa é também a proposta de Carvalhosa,
que em novembro lançará um projeto de Constituição completo para
promover o debate no livro Uma Nova Constituição para o Brasil: de um País de Privilégios para uma Nação de Oportunidades.
Seria essa mudança radical do ordenamento jurídico realmente a melhor
solução? É fato que os próprios constituintes reconheceram as
deficiências de sua criação, já que propuseram a revisão do texto num
prazo de cinco anos — uma providência bizarra, visto que cartas
constitucionais se pretendem por natureza duradouras. A revisão,
contudo, acabou sendo superficial, devido à crise em que o país estava
mergulhado em 1993, em função do impeachment do ex-presidente
Fernando Collor. Em vez disso, optou-se por corrigir alguns dos erros
mais flagrantes, sobretudo no capítulo da economia, como as restrições
ao capital estrangeiro, e por remendos pontuais por meio de emendas.
Propostas de mudanças estruturais, por outro lado, vêm sendo
seguidamente adiadas, ou desvirtuadas, já que a Constituição se
autoblindou, tornando o processo da aprovação de emendas longo e
dificultoso.
No momento, parece não haver condições políticas para uma
Constituinte, embora o assunto volte à tona com frequência, já tendo
sido defendido também à esquerda, pelos ex-presidentes Dilma Rousseff e
Lula. Mais recentemente, o presidente do Senado, David Alcolumbre,
chegou a aventar essa possibilidade, quase como uma ameaça. Para alguns,
como o consultor político Murillo de Aragão, seria mais recomendável
aproveitar as crises para avançar nas reformas. Assim como ele, não
falta quem alegue que a durabilidade da Constituição de 88, apesar das
inúmeras crises que o país atravessou, comprovaria seu valor e
resiliência. Para outros, como se viu, a Constituição é ela própria a
origem da sucessão de crises.
Seria temerário tentar prever qual caminho prevalecerá. O que parece
indiscutível é que o Brasil real no qual vivemos, com sua pesada carga
de atribulações, não se parece nem um pouco com aquele idealizado pela
Carta de 88. Este talvez seja o argumento definitivo contra ela. “Uma
boa Constituição não é suficiente para proporcionar a felicidade de uma
nação” resume o constitucionalista francês Guy Carcassonne. “Já a má
Constituição pode levar à sua infelicidade.” Parece ser este o nosso
caso.
Selma Santa Cruz, colunista - Revista Oeste