Alguns sofistas se destacaram. Eles pensavam alto, sim, como os filósofos. Era o trigo no meio do joio. Foi preciso
que mentes mais elevadas surgissem para além do debate botequeiro,
fantasioso, fraudulento e interesseiro. Só a reflexão individual
desinteressada ou o diálogo humilde e cortês levava à virtude, bem
pretendido naquela cultura.
Esta assombrosa realidade veio também para os julgamentos por atos delituosos daquela época.
Certo da
injustiça da acusação de ateísmo e sedução de jovens que pesava contra
Sócrates e indignado com seu julgamento, Platão escreveu a seguinte
carta:
"Outrora,
na minha juventude, experimentei o que muitos jovens experimentam.
Planejara, assim que alcançasse minha independência, começar
imediatamente a participar dos assuntos públicos. Então aconteceram
alguns incidentes com relação a esses assuntos. Como nossa Constituição
do Estado estivesse sendo alvo de muitas críticas, ela estava sofrendo
reformulações. Essa reformulação era conduzida por cinqüenta e um
homens, que atuavam como seus autores […]. Ora, ocorria que alguns
desses homens eram meus parentes ou conhecidos, e eles solicitaram que
eu tomasse parte imediatamente nos negócios do Estado naquilo que me
fosse pertinente. Como isso ocorresse na minha juventude, não causou
espanto. Eu acreditava, no entanto, que eles administrariam o Estado de
maneira que o conduzisse de uma situação de injustiça a uma forma de
vida justa, de modo que aguardava sua deliberação com grande
expectativa. Logo percebi, porém, que esses homens em pouco tempo faziam
o antigo estado de coisas parecer uma idade de ouro. Entre outras
coisas, enviaram Sócrates, um velho e caro amigo, que não hesito em
declarar o homem mais justo daqueles que então viviam, acompanhado de
outros, a um cidadão, com a intenção de levá-lo à força à execução ele
[Sócrates] não lhes deu ouvidos, preferindo expor-se aos piores perigos a
tornar-se cúmplice de ações criminosas. Em vista dessas coisas e de
outras semelhantes e não menos importantes, indignei-me e afastei-me do
mau regime de então.
Não muito
tempo depois, porém, o mandato dos Trinta sofreu um duro golpe e, com
ele, toda a Constituição do Estado. Senti então novamente, embora menos
entusiasmado, o desejo de participar dos assuntos coletivos e políticos.
Também aqui, em conseqüência da confusão, aconteceram coisas capazes de
despertar a indignação […l. Infelizmente, algumas pessoas poderosas
arrastaram diante dos tribunais nosso […] amigo Sócrates, levantando
contra ele uma acusação das mais graves e no mínimo imerecida: alguns o
acusaram de ateísmo, outros o consideraram culpado e executaram um homem
que não quisera participar da detenção criminosa de um de seus amigos,
outrora […] banido. A medida que voltava minha atenção para isso e para
os homens que conduziam a política, e também para a boa educação e as
leis, e quanto mais eu me entregava a essas observações e também
avançava em idade, mais me parecia difícil a condução dos negócios do
Estado; […] de tal modo que eu, antes cheio de ardor para trabalhar para
o bem público, considerando tudo isso e vendo a comunidade sob todos os
aspectos em completa desordem, acabei ficando aturdido e, apesar de não
desistir de pensar […] num modo de melhorar a administração como um
todo, esperando sempre o momento oportuno para agir, finalmente
compreendi que todos os Estados atuais são mal governados [ I Fui então
irresistivelmente levado a louvar a verdadeira filosofia e a proclamar
que somente à sua luz se pode reconhecer a justiça nos assuntos públicos
e individuais e que, portanto, as dificuldades do gênero humano não
cessarão antes que a cooperação dos puros e autênticos sábios chegue ao
poder ou que os chefes por aça divina, ponham-se de fato a filosofar" (disponível na excelente obra História da filosofia, de Christoph Helferick).
Sócrates
insistia em perguntas que ele sabia sem respostas por amor a um método
próprio dele, contrariando os sofistas, que, enganosamente, tinham
respostas para tudo. Sócrates perguntava, fazia pensar, pensar, e depois
não respondia. Não respondia não porque era ignorante. Não respondia
porque a pergunta não tinha resposta. Conceitos importantes, como
“virtude”, até hoje, são impossíveis de responder. Todavia, mesmo
acabando em nada seus questionamentos, o Oráculo de Delfos o elegeu o
homem mais sábio. Eu o chamo de O rei da aporia.
Por certo que isso irritava os sofistas e demais influentes da época.
Lendo a carta de Platão e analisando o julgamento de Sócrates lembro do julgamento da história do Brasil, envolvendo Lula.
No Brasil, em
tempo de eleições presidenciais, a pergunta que desassossega corações e
mentes é quem vencerá o certame. Pesquisas para lá de suspeitas apontam
Lula na frente.
Se Sócrates
usava a maiêutica (uma homenagem à sua mãe parteira) como arte de parir
uma verdade, o judiciário brasileiro de mais de dois mil anos depois
aborta uma falsidade, uma mentira. O STF tornou possível a elegibilidade
de um condenado criminal, sem a etiqueta da culpa nos autos, mas com o
certificado de corrupto na testa. Lula não é inocente nem aqui nem na
China. Esta é a certeza que emana do coração de uma realidade clara e
indiscutível.
No que o
Supremo Tribunal Federal acreditou para anular o processo de Lula e
trazê-lo ao mundo novamente? Peguei o costume socrático de perguntar
sempre. Mas, aqui, acredito que temos a resposta, e ela não é nada
convincente.
O STF, o
moderador brasileiro por escolha própria, ou seja, sem voto, deve ter
ouvido de algum oráculo por aí que os seus ministros são os homens mais
sábios que existem e que Luis Inácio Lula da Silva é o melhor e fará
realizar o sonho da utopia da felicidade (que, nos dias de hoje,
equivale a impedir Bolsonaro de se reeleger). E eles acreditaram. A
soltura de Lula é prova disso, pelo que constou do habeas corpus n.
193.726.
A mera
anulação e soltura deu a impressão de que Lula não roubou o povo. Pura
mentira. O povo tem esta representação do que aconteceu, uma ideia, uma
imagem, é tudo, e é suficiente para desmistificar o Luladrão.
Só restou ao
povo brasileiro lamentar os “bons” advogados de Lula e os iluminados
ministros do Supremo Tribunal Federal, todos unidos e crentes que Lula é
a melhor solução para o Brasil.
Lula é a medida de todas as coisas!
Bradam eles, em imitação bem grosseira a Protágoras, o maior sofista
contemporâneo das grandes mentes da antiguidade.
E, ainda, os
sofistas podem contar com mais ajudantes nesta busca das “verdades”, a
classe jornalista e certos “institutos de pesquisa”.
Se a
conclusão das tais pesquisas estiver certa, uma verdade surge, enfim: a
humanidade não evoluiu nada e a felicidade está cada vez mais longe de
cada um de nós.
Sérgio Renato de Mello - O autor é Defensor Público de Santa Catarina