Corrupção petista, de caráter político revolucionário, inscreve-se na tradição patrimonialista para dela tirar proveito
O Brasil
vive um processo particularmente complexo de transição de uma
mentalidade patrimonialista, “aprimorada” em seu caráter bolchevique
graças aos governos petistas, para uma mentalidade moderna, própria de
um Estado em que começa a vigorar o império da lei.
Ou seja, estamos
presenciando uma difícil transição do governo de uma classe política
acostumada a manipular leis e instituições, como se estas devessem estar
a seu serviço e proveito, para um governo ancorado em instituições,
cujo validade transcende à ação direta dos políticos.
As gravações
do ex-senador Sérgio Machado com os senadores Renan Calheiros, Romero
Jucá e José Sarney são, neste sentido, particularmente ilustrativas. Com
efeito, elas exibem intenções e tentativas de manipulação das leis e
instituições, como se ações junto a ministros e juízes fossem de
natureza, por si sós, a alterarem todo um processo judicial. De fato,
estavam e estão acostumados a um tipo de comportamento que se espelha em
uma concepção patrimonialista, como se a coisa pública não estivesse a
serviço da coletividade, mas de seu proveito próprio e pessoal.
Não
se trata, aqui, somente da questão de se tal comportamento configura ou
não um crime determinado como obstrução de Justiça, mas de um tipo de
atitude que se pauta, como se fosse seu direito próprio, em considerar
leis e instituições como se pudessem ser modificadas a seu bel-prazer.
Mais especificamente, habituaram-se à impunidade como se as leis a eles
não se aplicassem. Espantam-se com o que está acontecendo, pois não
perceberam que o país está mudando, e esta mudança está fortemente
ancorada em uma sociedade que está dando um basta a esta mentalidade.
Caberia
aqui uma observação relativa ao suposto “patrimonialismo” petista.
Lê-se frequentemente, inclusive em intelectuais de esquerda, que o PT
teria incorrido nas práticas dos partidos políticos tradicionais, como
se, em sua pureza, ele tivesse sido seduzido pelo atraso. Os petistas
procuram se desresponsabilizar do que fizeram, dizendo ter feito somente
mais do mesmo. Igualam-se para se eximirem de sua própria culpa. Tal
posicionamento tem ainda o objetivo de manter a pureza da ideia de
esquerda, como se esta pudesse simplesmente ser recuperada sem nada
reconhecer de feito próprio.
Ora, a corrupção petista é fruto do
aparelhamento partidário do Estado, com o intuito de, progressivamente,
levar a cabo uma transformação socialista da sociedade brasileira. Ela é
bolchevique. Para eles, esse aparelhamento e a sua corrupção seriam
meros meios de uma progressiva mudança revolucionária. Ou seja, a
corrupção, para além dos benefícios pessoais, seria um instrumento de
captura da sociedade e de controle, para isto, de seus meios de
comunicação privados. Nesta perspectiva, a corrupção petista, de caráter
político revolucionário, inscreve-se na tradição patrimonialista para
dela tirar proveito. A corrupção e o aparelhamento partidário do Estado
pertencem à própria ideia de esquerda, fazem parte de sua essência.
O que é particularmente interessante no cenário político atual é a clivagem estabelecida entre a sociedade e a classe política. A
primeira se caracteriza por valores não patrimonialistas, exigindo de
seus representantes um comportamento condizente com a proteção pública
dos recursos públicos. Não mais admite que os recursos da saúde, da
educação, do saneamento, da habitação, entre outros, sejam drenados pela
corrupção, desviados de seus objetivos específicos.
Ela abomina o
fisiologismo, a barganha de cargos e todo esse espetáculo explícito de
negociação ou de negociatas de posições, emendas e outras benesses em
detrimento do bem público. Para isto, foi às ruas e criou as condições
do impeachment. A sociedade brasileira não se deixou corromper, e talvez
seja este o nosso maior ativo, um patrimônio propriamente nacional. Ela
clama, portanto, por um novo Estado, livre do patrimonialismo histórico
brasileiro e de sua vertente petista. Ela já efetuou uma mudança de
mentalidade, que não ocorreu ainda na classe política, que dela fica a
reboque.
A operação Lava-Jato, por sua vez, é a expressão desta
nova mentalidade que já opera no nível propriamente estatal. Ela começa a
fazer valer o governo das leis e instituições, resgatando a ideia
propriamente republicana de coisa pública. Sua tradução mais imediata é a
punição de poderosos, daqueles que viviam à margem da lei,
desrespeitando as instituições e considerando a coisa pública como se
fosse privada.
A impunidade, graças a ela, está sendo progressivamente
abolida, trazendo agentes políticos e empresariais às suas respectivas
culpas e responsabilidades. Tudo isto, evidentemente, surpreende,
precisamente por revelar o surgimento de uma nova mentalidade em um
setor da burocracia estatal, no caso no Judiciário, no Ministério
Público e na Polícia Federal.
A sociedade se sente na Lava-Jato
representada. Na verdade, esta não teria condições de ser bem-sucedida
se não contasse com esse imenso apoio social. O país se modernizou
socialmente. Goza de uma ampla liberdade de expressão, com jornais
independentes, investigativos e de opinião, em linhas gerais em defesa
do avanço da democracia. Para todos os efeitos, não se trata de um
movimento social dirigido contra um partido determinado, mas de
afirmação de novos valores e princípios, voltando-se contra qualquer
partido que não seguir esses novos valores. Ontem o PT foi o foco
principal, hoje é o PMDB, talvez amanhã seja o PSDB ou qualquer outro
partido. A moralidade pública tornou-se um princípio da sociedade, e
esta exige que a classe política se paute por este novo padrão político.
A
ética na política é atualmente um bandeira social. Exige a prudência
que a classe política e o novo governo entrem em sintonia com uma
sociedade portadora de uma nova mentalidade.
Fonte: Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul