Madeleine Lacsko
Cristãos brasileiros não querem mais invisibilidade nem levar desaforo para casa
A patrulha progressista vai ter de calçar as sandálias da
humildade e tratar evangélicos como seres humanos.
"Não me venha com isso de psicanálise que, para mim, é
igreja de rico." A frase de Manoel Fernandes, dono da Bites, uma das mais
respeitadas consultorias de Big Data do Brasil, arrancou risadas da platéia
forrada de intelectuais em uma palestra na PUC. As pessoas talvez tenham
gargalhado pelo inusitado, pelo saboroso sotaque nordestino do palestrante e
pela reação debochada de Luiz Felipe Pondé à provocação. O fato é que na
maioria dos ambientes intelectualizados do Brasil, você pode acreditar em
psicanálise e até em astrologia, tarô, runas, ler borra de café na xícara mas,
se for evangélico, é imbecil. (Diga-se de passagem, não no Labô da PUC, um dos
poucos locais em que evangélicos têm sua intelectualidade respeitada na
academia brasileira.)
O fenômeno de julgar inteligente ou mesmo aceitável a ideia
de resumir a natureza humana à racionalidade é recente. A própria Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, estabelece em seu artigo 18 que a
religião é parte da dignidade humana. Proibir alguém de ter religião ou de
manifestar sua religiosidade em privado ou em público é violação de Direitos
Humanos. Essa proibição não é só colocar uma arma na cabeça, mas constranger,
difamar, ridicularizar ou gerar consequências nefastas para quem o faz. Já
experimentou entrar num Centro Acadêmico da USP ou mesmo num encontro de
ativistas de Direitos Humanos e dizer que é crente? Boa sorte. "Toda a pessoa tem direito à liberdade
de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade
de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a
religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado,
pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos", diz o artigo 18 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Vemos ateus reclamando, muitas vezes até com razão, da
discriminação por não acreditarem em Deus - o que, afinal, é direito deles.
Esquecem, no entanto, que batem como leões e apanham como gatinhos. A massa
cristã brasileira sabe que precisa calar sobre sua religiosidade se quiser ter
chances de ser levada a sério na universidade e na profissão. Entre os
intelectuais existe a predominância do pensamento de que evangélicos são todos estúpidos.
Não que esse pessoal conheça evangélicos, estude o assunto ou já tenha pisado
numa igreja. Provavelmente eles viram alguns televangelistas e misturaram no
poço de arrogância e preconceito que cultivam na alma.
Com a chegada de muitos evangélicos ao poder, a fé cristã
passou a ser associada a uma vertente política, como se fosse possível submeter
o mais sublime da alma humana - que é a experiência individual da fé - a
qualquer coisa do mundo racional. Há muitos evangélicos na direita porque esta
vertente política foi a que primeiro considerou a hipótese de evangélicos
também serem humanos e abriu espaço para uma pauta de costumes em comum. E
desse movimento vêm duas distorções. A primeira é a ideia de que cristianismo
tem a ver com a direita. A segunda, bem mais divertida, é a
"conversão" recente de vários ateus com sede de poder. Amo perguntar
onde congregam e ouvir de volta: "como assim, congrega?". Gente que
nunca pisou numa igreja agora se diz cristã para se aproximar de poderosos.
Mas o fato é que a esmagadora maioria da
população brasileira é cristã. [Informando o óbvio: a classificação "cristãos", inclui todos que acreditam em Jesus Cristo, no Cristianismo, na Doutrina Cristã, professam a Fé Cristã, o que inclui, sem limitar, católicos e evangélicos.] E, com o crescimento da população evangélica e a
chegada de vários evangélicos a postos de poder, os cristãos já tem força para
dizer que estão cansados de ouvir deboche e serem tratados como piada.
Há cristãos em todos os segmentos da sociedade brasileira,
mas há respeito apenas em nichos muito específicos. O mais respeitado por
intelectuais e progressistas é o dos não-praticantes que só não se dizem ateus
por causa do preconceito da família. O outro bem aceito é o que frequenta a
paróquia mais chique da cidade, no caso da minha São Paulo, a Nossa Senhora do
Brasil. O cristão cujo líder religioso faz declarações políticas lacradoras
também é respeitado na semana em que essa declaração é feita. Fora isso, todos
imbecis, principalmente se for pobre, aí é necessariamente explorado, um
coitado. Astrólogo, tarólogo, coach e terapeuta holístico não exploram ninguém,
só pastor.
A forma como a ministra Damares Alves é tratada pela
imprensa talvez seja o exemplo mais vivo desse preconceito religioso que,
aliás, é crime pendurado na Lei do Racismo junto com a homofobia. Ninguém lê o
que ela propõe, não se ouve o que ela fala, se confunde pregação antiga da
igreja com política, experiências transcendentais de fé são ridicularizadas e
está tudo bem. Isso é muito diferente de discordar. Tome-se por exemplo a
questão da sexualidade na adolescência e o início da vida sexual. Quantos
noticiaram o que está nos documentos e quantos noticiaram o que se imagina que
pensem os crentes a respeito do assunto? [A Bíblia Sagrada é, de forma inequívoca, contra o homossexualismo, a sodomia e outras práticas.]
(...)
Ele já começa com uma estocada na turma que gosta de dizer
que é do bem mas debocha de evangélico: a matemática. Mostra a conta em que 90%
dos brasileiros se dizem cristãos e conclui que é uma sociedade cristã e, na
linguagem da esquerda, toda uma "classe trabalhadora" cristã.
Liberdade de expressão, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é
a de "não ser inquietado" por suas opiniões. Assim funciona também
para a religião. Se muita gente pisoteou evangélicos porque eles não tinham
força de fazer cumprir seus direitos fundamentais, parece que esta era começa a
terminar. Tomara.
Em Vozes - Gazeta do Povo - MATÉRIA COMPLETA - Madeleine Lacsko
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