O Estado de S.Paulo
O que estamos presenciando hoje no Brasil é um retrocesso civilizatório
Não é qualquer ideia, por ser uma mera opinião, que tem validade. Se
isso fosse verdade, o conhecimento não se estruturaria, a civilização
não avançaria e a vida humana seria impossível. Ideias argumentadas são
as que, tendo pretensão de validade, são submetidas à discussão e ao
confronto, aceitando testes, debates e verificações. O primeiro tipo
conduz ao arbítrio e o segundo, a ordenações políticas baseadas na
liberdade.
A ciência, grande expoente do processo civilizatório, aquele que torna
um bípede falante qualquer um verdadeiro ser humano, teve um longo
percurso histórico, com pensadores mais avançados pagando até com sua
própria vida. Foi um processo penoso e difícil através do qual a força
das ideias terminou por vigorar contra a violência da dominação
política.
O conhecimento se estrutura, a experiência é valorizada, o confronto
público de ideias torna-se uma condição deste progresso e seus efeitos
se fazem sentir no bem-estar de todos, graças à descoberta de novas
técnicas. Vacinas, protocolos de saúde e medicamentos são seus frutos. A
pesquisa termina por estabelecer suas próprias regras, de modo que
todos se possam reconhecer enquanto agentes de um conhecimento de
dimensões coletivas.
Do ponto de vista político, a liberdade no nível do conhecimento se
traduz por novas formas de estruturação do Estado, vindo a ser um
princípio a organizar as relações sociais e políticas. O espaço do
arbítrio, embora não possa ser eliminado, é então circunscrito, de onde
surge a noção moderna de cidadania.
Ora, o que estamos hoje presenciando no País é um retrocesso
civilizatório. O bolsonarismo, nome para designar um amontoado de ideias
carentes de fundamentação, porém eficaz do ponto de vista do
convencimento de uma parte da população, tem como uma de suas
características principais o menosprezo da ciência e, por via de
consequência, da liberdade. O desrespeito ao outro é total, tanto do
ponto de vista científico quanto moral, este último se traduzindo pela
ausência de compaixão e pela banalização da morte.
Trata-se de um movimento de extrema direita, que deve, evidentemente,
ser distinguido da direita conservadora e da direita liberal, que prezam
a ciência, a moral, o debate livre a democracia, a despeito, muitas
vezes, de divergências sobre o significado desses conceitos. Quisera
aqui salientar princípios comuns por eles compartilhados, como os que
são igualmente vigentes no campo da esquerda, excluindo sua franja
autoritária e totalitária. A extrema direita não adere a esses valores
democráticos.
O que temos visto no tratamento da atual pandemia é a afirmação de meras
opiniões do presidente Bolsonaro como se fosse um pesquisador a emitir
“verdades” de que só ele conheceria o fundamento. O exercício
autoritário do poder se conjuga com o desrespeito completo aos
procedimentos científicos. É simplesmente aterrador que dois ministros
da saúde tenham sido substituídos em curto espaço de tempo por não
concordarem com as opiniões “médicas” do presidente. Um presidente não
precisa ser especialista em nada, basta cercar-se de assessores
competentes. E o que fez o terceiro ministro? Simplesmente seguiu o
arbítrio presidencial.
O que faz o presidente? Assessora-se com seus filhos e seguidores, cujo
único “princípio”, se é que essa palavra possa ser aqui empregada,
consiste em construir uma narrativa que lhe sirva, nas redes sociais,
para seu projeto reeleitoral. Que isso seja bom para a saúde dos
brasileiros é algo meramente secundário.
As redes sociais, aliás, são campo particularmente propício para esse
tipo de prática autoritária, pois lá passa a valer a narrativa, a
pluralidade e a desordem das narrativas, como se todas as opiniões
fossem de igual valor. Uma ideia científica passa a ser uma simples
narrativa, com a qual se confrontam outras narrativas que, uma vez
desmentidas, são substituídas por outras narrativas carentes de
validade, e assim por diante. A ideia balizada, argumentada, desaparece
ante uma avalanche “informativa”, hoje identificada como fake news.
Protocolos científicos, laboriosamente elaborados e estabelecidos há
décadas, se não séculos, são simplesmente atirados para o ar, passando a
valer a solução mágica de um medicamento determinado, lançado ao léu
por supostos cientistas que nem seguiram as regras do seu meio. No caos
do vale-tudo, seria uma “solução” entre todas, como se fosse igual
escolher entre a conservação da vida, a cura da doença e aventuras
perigosas no corpo de cada um.
As consequências do desprezo pela ciência e pelos princípios
democráticos se fazem igualmente sentir no domínio dos valores morais.
Joga-se contra a ciência, a favor do autoritarismo, quando corpos se
amontoam em hospitais e cemitérios. A compaixão humana desaparece,
entra-se numa contabilidade de necrotérios, como se as pessoas devessem
estar submetidas ao espectro desse tipo de morte. A política põe-se a
serviço das trevas e da ignorância – em linguagem popular, do capeta.
Denis Lerrer Rosenfield, filósofo e professor - O Estado de S. Paulo