A sequência de medidas
provisórias e a nova regulamentação da Lei Anticorrupção, que na prática anulam o sentido do prefixo, que quer dizer contra, revelou
a total desistência do mínimo de pudor pelo desgoverno Dilma no findo ano de
2015. A mudança da condição de 50 anos após a morte
para 10 para que se lhe permita outorgar o título de Herói Nacional a Leonel
Brizola, sem motivo aparente que
não o de atormentar o vivo Luiz Inácio Lula da Silva, põe em dúvida a sanidade
mental de quem a promoveu. Pois sobram problemas para a chefe do desgoverno
enfrentar neste grave momento e não faltava nesta hora aziaga uma decisão sem
motivo sério algum em meio à recessão brutal e a um processo de impeachment,
que, na verdade, mal começou.
Mas
a presidente não desiste de nos surpreender e nos tem propiciado mais do mesmo em seu estilo pouco sagaz e nada
sutil, sem lógica e com ousadia imodesta. Há uma semana, seu padrinho Lula lhe ocupou a
agenda com oportuno jantar (à véspera de
um depoimento de cinco horas à Polícia Federal). E nele exigiu dela entusiasmo e otimismo. A sucessora não se fez de
rogada e convidou os setoristas do palácio para um café da manhã, sob a égide
de uma exibição de falsas flores do recesso e coroado com
um selfie cretino que irradia, do lado dela, um absurdo
desconhecimento da gravidade da crise e, do ângulo dos encarregados da cobertura
da Corte desapegada aos fatos, um grau similar de alheamento brechtiano da
realidade.
O pessedista pernambucano Thales
Ramalho cunhou a expressão flores do recesso para definir o truque de
políticos espertos de irem a Brasília nas férias para ocuparem tempo e espaço – às vezes com destaque – nos meios de comunicação revelando fatos irrelevantes
que no cotidiano do quadro político não tinham como merecer importância. Lula
mandou Dilma ser irrealista, ela obedeceu e os repórteres pareciam dizer, sem
ligar a mínima para seu público, assolado por falências e desemprego: “Se fui pobre, não me lembro”.
Os semblantes deslumbrados de
Dilma com o poder que se esvai e dos jornalistas com a proximidade da glória
efêmera e rara contrastam com as notícias da planície, que são de fazer chorar.
No congraçamento pré-carnavalesco em
pleno recesso da recessão, a presidente festejou
vitórias eventuais e inconsistentes no processo do impeachment. Mas,
entrementes, o anúncio
da inflação de 10,67% em 2015, a mais alta desde 2002, é a pior de uma
série de notícias ruins, como o retorno de 3,7 milhões
de pobres da classe C às classes D e E. E
desolador é que, no “país do futuro” (apud Stefan Zweig), o desemprego de patrícios entre 15 e 24 anos deve ter sido de
15,5% em 2015 – maior do que a média mundial no ano, de
13,1% .
A maior novidade contada por ela
agrada a pouquíssimos: deverá
reunir-se no café com setoristas em 2017, porque o profeta Lula de Caetés, o vice Temer, que se
refestela no poder à sombra, e Madre Marina acham que o impeachment morreu, mas
não foi enterrado. As exéquias são previstas para depois do carnaval, época
em que a Quarta-Feira de Cinzas terá ares de terça-feira gorda. Ao menos nos
salões do palácio onde o escárnio vira orgia do acinte a desafiar cidadania e
República, corroídas pelos ratos.
Ninguém achou um só deslize que
ponha sob suspeita sua honra pessoal – repete Dilma. Não lhe
falem no rombo das propinas da Petrobras,
na capivara de sua protegida Erenice Guerra nem nas dúvidas sobre o comportamento do fiel Walter Cardeal,
diretor da Eletrobras. Para limpar as fichas dos espíritos santos de orelha
Jaques Wagner e Edinho Silva madama conta com o pretexto do “vazamento seletivo”, agora comprometido
pelo destaque à citação de Fernando Henrique na delação de Cerveró. E com o beneplácito
alugado do baixíssimo clero (nas
profundezas de pré-sal) da Câmara,
liderado por Leonardo Picciani. Só não dá mais é para soltar o líder
Delcídio “do” Amaral.
Palavras impressas em papel não
têm como ser fiéis a mais uma confissão de probidade feita pela presidente
naquele repasto. A frase
“tenho clareza de que tenho sido virada
dos avessos” é um exemplo cabal da desconexão entre seu discurso e os
dicionários existentes. Quantos e quais são os avessos de Dilma? Terá ela mais
de um avesso (o lado oposto ao dianteiro)
ou quis dizer às avessas (ao revés)?
É impossível adivinhar onde
encontrou o plural de uma palavra singular para se eximir da evidência de que deixou tanta
gente roubar tanto sem nunca ter percebido. Não dá para entender tal sentido
oculto na leitura, ainda que atenta. Para isso há que assistir às pausas
súbitas, às sílabas atropeladas e aos aflitos apelos à compreensão dos
interlocutores. E isso só é possível vendo-a e ouvindo-a na televisão. O jeito de dizer a frase sem nexo importa mais do que a falta
de nexo de sua fala. Pois denota o cansaço desesperado que Dilma expõe
ao repetir infindas vezes algo que considera óbvio, mas não consegue comprovar
e assim convencer quem tente, sempre em vão, ouvi-la e entendê-la. Da outra
ponta da linha, assediado de todos os lados pela crise, o pobre brasileiro só
pode ficar mais exausto e mais desesperado do que ela própria.
Dilma disse ainda que ninguém
devia aposentar-se aos 55 anos. “Nós estamos morrendo menos. E os jovens estão nascendo mais”, justificou-se. Estas patacoadas estão à altura da transmissão da tríplice epidemia pelo ovo
do mosquito, da glorificação da mandioca e da sagração da mulher sapiens. Não
querem dizer nada e nada indicam. São somente novas pérolas da língua
particular de Sua Excelência, tratada comme il faut por Celso Arnaldo
Araújo no livro O Dilmês. Criará
um ministério para traduzi-la?
Após ouvir que a CPMF é
um problema de saúde pública, o
contribuinte a ser assaltado entende perfeitamente que terá de pagar pelo 2016
feliz que Dilma se almeja. Pois sabe que só lhe restará pagar a conta de um
problema de saúde pública sem jeito: o
desgoverno dela.
Fonte: José Nêumanne, no Estadão