O Supremo é
o guardião da Constituição. Mas Luiz Edson Fachin, que vai ser sabatinado pelo Senado,
atribui poucos méritos ao texto constitucional
O Senado sabatinará o jurista Luiz Edson
Fachin, indicado
por Dilma Rousseff para a cadeira vaga no STF desde a renúncia de Joaquim
Barbosa. O fato de que
Fachin fez campanha para Dilma, em 2010, não o desabona. “Ele manifestou uma posição política, votou na presidente”, disse o
senador tucano Álvaro Dias, para explicar:
“O que deve prevalecer não é a opção política circunstancial” mas “o notório saber jurídico, a reputação
ilibada e a independência de quem vai julgar”. De fato, em 2002, o Senado
aprovou a nomeação de Gilmar Mendes por FH e, em 2009, a de Dias Toffoli por
Lula, sem impugnar a “opção política
circunstancial” de nenhum dos dois.
O problema é que,
no caso de Fachin, a “opção política”
não expressa um
exercício individual de cidadania, mas uma militância específica na arena do Direito. “Tenho em minhas mãos um manifesto de
centenas de juristas brasileiros que tomaram lado”, discursou Fachin cinco
anos atrás. “Apoiamos Dilma para
prosseguirmos juntos na construção de um país capaz de um crescimento econômico
que signifique desenvolvimento para todos”. Há algo
extraordinário quando juristas assinam coletivamente um manifesto político. Manifestos de intelectuais, economistas ou
sambistas são só opiniões. Por outro lado, um “partido de juristas” tem o condão de
ameaçar uma ordem jurídica fundada sobre o alicerce da neutralidade da Justiça.
É isso que deveria acender uma luz de alerta no plenário do Senado.
O “partido de juristas” que escolheu Fachin como seu porta-voz não é
o PT, como imaginam tantos espíritos simplórios. O “lado” dos juristas “que
tomaram lado” é o da mudança política e social pelo Direito, à margem da
vontade majoritária refletida pelo voto popular. “Se o conselho que se dava aos juízes antigos da Itália era não use a
testa, use o texto, hoje a máxima pode ser reinventada para use a testa, não
esquecendo do texto e seu contexto”, escreveu o
indicado de Dilma em artigo recente. Obviamente, o juiz tem a
prerrogativa de interpretar a lei à luz de princípios gerais e circunstâncias
singulares. Contudo, de acordo com
Fachin, os juízes, como coletividade que tem “lado”, devem abrir as portas para o futuro, guiando a sociedade
numa direção virtuosa.
O STF é o guardião da Constituição. Fachin, porém, atribui poucos méritos ao texto constitucional. Num
ensaio para a “Revista de Direito
Brasileira”, publicado em 2011, ele
menciona “a
Constituição que não vimos nascer”, qualificando o processo
constituinte da redemocratização como “uma promessa” que “se converteu em ausência” pois “nela, o que de
pouco Marx havia deu lugar a muito Tocqueville”. O fracasso, teoriza, decorreu de um recuo, “a nostalgia da primeira modernidade”,
que o jurista entende como primado do indivíduo sobre o coletivo e do mercado
sobre os direitos humanos. Não há nada
de errado com a crítica acadêmica à Constituição, mesmo
quando exprime impulsos autoritários. Outra coisa, bem diferente, é introduzi-la na Corte Constitucional.
Segundo a tese de Fachin, o “leito de Procusto” do Direito é a
economia de mercado, pois “a compra e
venda que tudo transforma em mercadoria” interpõe-se “entre os significados da equidade, democracia e direitos humanos”. Na
sua visão, a prevalência do mercado
“afasta o Estado-legislador do centro dos poderes e intenta limitar o
Estado-juiz a retomar-se como bouche de la loi” (isto
é, numa antiga expressão pejorativa, como mero arauto da lei). O ideal
do jurista, camuflado na floresta de uma retórica hermética, é a concentração
do poder no Estado e a autonomia dos juízes para implodir o “leito de
Procusto”.
O
ativismo judicial de Fachin não encontra limites. Se, como
imagina abusivamente, nosso arcabouço legal não é muito mais que uma
reprodução das leis do Estado liberal do século XIX, a
solução seria fabricar, pela vontade dos juízes, uma nova Constituição.
A Carta de 1988 “proclama erradicar a
pobreza” e “reduzir as
desigualdades”, mas “não constrói
searas de soberania popular”, acusa no mesmo ensaio, para indicar o
caminho: “É evidente que uma Constituição
se faz Constituição no desenrolar de um processo constituinte material de
índole permanente”, pelo recurso a “ações
afirmativas” e pelo “resgate de
dívidas históricas”. Se os senadores aprovarem o nome de Fachin, estarão dizendo que deve ser atribuído ao
STF um poder constituinte.
O
horizonte de um “processo
constituinte” de “índole permanente” é um tanto
assustador. A filósofa Hanna Arendt enfatizou que, nas ideologias
totalitárias, o movimento é tudo e “o
próprio termo lei mudou de sentido: deixa de expressar a estrutura de
estabilidade dentro da qual podem ocorrer os atos e os movimentos humanos para
ser a expressão do próprio movimento” (“Origens do
totalitarismo”). Seria ridículo apontar em Fachin um cultor do totalitarismo. Contudo, sua aversão à “estrutura de
estabilidade” da legislação e sua
obsessão por “searas de soberania
popular” criadas
pelo gesto soberano do juiz não podem passar em branco numa sabatina digna
desse nome.
O “partido dos juristas” almeja
reescrever a Lei, interpretando livremente os princípios gerais do Direito para dinamitar as heranças constitucionais
da “primeira modernidade”. E eles querem operar acima
e além dos limites definidos pela separação de poderes: “Quando (...) o Judiciário se vê compelido a
debater questões de poder, assacam-lhe de pronto a crítica (...) do ativismo
judicial”, reclama Fachin, sem se
dar conta de que o povo elege o presidente e os legisladores, mas não elege
juízes. Displicente, o Senado aprovou o nome de Dias Toffoli, ao qual faltava o “notório saber” para ocupar uma
cadeira no STF. Agora, os
senadores enfrentam um desafio distinto: o nome escolhido por Dilma usa um indiscutível “notório saber”
para contestar a
ordem constitucional e as prerrogativas do Congresso. É hora de dizer "não".
Fonte: Demétrio Magnoli – O Globo