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quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O ‘fim’ do agronegócio - J.R. Guzzo


O Estado de S. Paulo

Analistas falam em boicote por desmatamento, mas números do setor revelam outra realidade

As notícias mais recentes em torno da produção rural no Brasil vinham sendo uma dor de cabeça e tanto. Analistas em estado de aflição, que nunca viram uma enxada na vida mas são recebidos 24 horas por dia nos meios de comunicação para nos dizer o que está acontecendo no campo, diziam que agora sim, a coisa tinha ficado realmente preta: grandes empresas multinacionais vão boicotar o agronegócio brasileiro, a qualquer momento, caso não recebam provas de sua inocência do crime de destruição das florestas”. É o começo do fim, garantem. Logo em seguida, porém, os números que medem a vida no campo como ela é, e não como os entrevistados pela mídia imaginam que seja, revelam outras realidades.
O Brasil já vendeu nos sete primeiros meses de 2020 o mesmo volume de grãos vendido em todo o ano de 2019.
Mais: cerca de 50% da safra do ano que vem já está vendida antes mesmo de ser plantada.


O fim do agronegócio do Brasil, como se vê, não é para amanhã. Mas as mensagens que o público recebe vão no sentido contrário – o que recomenda, por razões do bom senso mais comum, que você aposte suas fichas na soja, no milho e no boi e deixe de lado as crenças de fim do mundo a curto prazo pregadas pelos pastores da virtude verde, ecológica e orgânica. No fundo, nem seria preciso ver muito número para concluir que o agro está mais do que salvo – basta ver um pouco quem está do lado contrário, e o que esse pessoal anda dizendo. O último craque escalado pelo time é a cantora Anitta, que numa “live” com um deputado de um “partido do campo progressista”, anuncia suas extraordinárias ideias sobre a questão agrícola brasileira.

Anitta informa que antes de falar “estudou” o assunto da “pecuária”; aparentemente, ela acredita que os conhecimentos que adquiriu durante esses estudos lhe dão autoridade para ensinar como as coisas realmente são. Pelo que deu para entender, a cantora está horrorizada com o fato de haver no Brasil mais cabeças de boi do que pessoas. (Imaginem se ela soubesse a quantidade de frangos; melhor não lhe dizer nada sobre isso.)
Esses bois todos, segundo Anitta ouviu dizer, estariam poluindo o ar que a população respira, mesmo a milhares de quilômetros de distância, e bebendo água demais, entre outros delitos. Sua sugestão a respeito é fazer alguma lei para aumentar o preço da carne; assim as pessoas comeriam menos e haveria menos “consumismo” nas churrascarias.
O deputado “de esquerda” ouve tudo com a cara de quem está numa aula magna na Universidade de Oxford. 
Desse jeito vai ser difícil acabar com o agronegócio brasileiro.

J.R. Guzzo, jornalista - Coluna O Estado de S. Paulo

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Anitta e a República dos Rastaqueras

A decadência cultural do país é inquestionável. A ignorância se transformou em política oficial. Quanto mais medíocre, melhor

[a decadência cultural é tamanha que consideram exposições que fazem apologia à pornografia, pedofilia, zoofilia, manifestação artística  e cultural - vide QUEERMUSEU, patrocinada pelo Banco Santander. 
Aludida manifestação foi tema da redação do vestibular FUVEST 2018.
Teve outra manifestação artística cultural no MASP, na qual uma criança tocava um homem nu.]

O Brasil vive uma crise de identidade cultural. Ao longo do século XX, foi recorrente a busca incessante de interpretações do nosso país. A grande migração do Nordeste para o Sudeste e os deslocamentos do campo para a cidade transformaram radicalmente o país. O nascimento das primeiras metrópoles e suas profundas contradições sociais e políticas fomentaram a necessidade de compreender o momento histórico. Tudo era novo, e as antigas leituras não davam conta das transformações que estavam ocorrendo em ritmo acelerado. O velho ufanismo do Conde de Afonso Celso era ridicularizado. O Brasil moderno necessitava da crítica, e não da apologia despolitizada do passado e do presente.

Na literatura, no cinema, nas artes plásticas, na música foi sendo construída a nossa identidade cultural, produto complexo, contraditório, mas que possibilitou estabelecer diálogo entre as diferentes regiões do país, as classes sociais, os desafios políticos e a elite dirigente. A cultura brasileira tinha uma presença no mundo ocidental. Dialogava com o que havia de mais moderno. Em algumas áreas, acabou se transformando em referência para outras culturas. Atualmente, o panorama é muito distinto. A crise de identidade cultural pela qual passamos é a mais profunda da nossa história. Hoje, nada ou quase nada nos une. Somos um país fragmentado, dividido. Não há diálogo na música, na literatura, no cinema, nas artes plásticas. A cultura brasileira nada conta para o mundo.

Nesta conjuntura, é possível compreender como algumas figuras caricatas tomaram conta do cenário cultural. A cantora Anitta é o melhor exemplo. É elogiada como um verdadeiro símbolo do Brasil contemporâneo. Uma representante do país para o mundo. A música “Vai malandra” já foi chamada de novo hino nacional. O reacionarismo da letra (falar em versos, aí já é demais), a desqualificação da mulher, a idealização da favela (é favela mesmo; comunidade não passa de uma tentativa de transmudar pela palavra uma vergonha nacional, aceitar a precarização da moradia e das condições de vida de milhões de brasileiros) é dado de barato, como se fosse algo absolutamente irrelevante. Foi até chamada para cantar o Hino Nacional no último Grande Prêmio de Fórmula 1, em Interlagos — seguindo este caminho, logo teremos como intérpretes Ludmilla ou Pabllo Vittar. No réveillon, na Praia de Copacabana, foi considerada a grande estrela. Brindou o público com frase de rara profundidade filosófica, como uma Hanna Arendt dos trópicos: “Vocês acharam que eu não ia rebolar a minha bunda hoje?”

A decadência cultural do país é inquestionável. A ignorância se transformou em política oficial. Quanto mais medíocre, melhor. Tem de ser rasteiro para ser aceito, fazer sucesso. O Brasil virou a República dos Rastaqueras. No país da Anitta, é indispensável dizer sim, sempre dizer sim. Há o medo manifesto de ser hostilizado por defender uma outra visão de mundo. Os radicais dos anos 1960, hoje em idade provecta, preferiram aceitar passivamente o papel de coadjuvantes. Não perceberam o ridículo. Pior, chancelaram com entusiasmo a cultura da ignorância. Tudo para não perder o proscênio. Em busca da eterna juventude, agem como Peter Pans tupiniquins. Como chegamos a este ponto de degradação? O desaparecimento de um pensamento crítico pode explicar este terrível cenário. A reflexão, fruto da exaustiva pesquisa, desapareceu. Culturalmente — mas não só — o país perdeu o rumo. Paradoxalmente, nunca existiram no Brasil tantas secretarias — estaduais e municipais — dedicadas formalmente à cultura. São centenas. Mas na República dos Rastaqueras, elas servem somente como moeda de troca para garantir a “governabilidade” das prefeituras e governos estaduais.

O Brasil acabou se transformando em recebedor passivo do que há de pior da cultura ocidental, especialmente a americana. Reproduz de forma caricata as manifestações culturais (além do racismo negro) dos setores ditos marginais dos Estados Unidos — que foram mercantilizados a peso de ouro pela indústria cultural. Ao invés da antropofagia cultural, temos o mimetismo caricato.  Não é possível atribuir ao conjunto da cultura ocidental a mediocridade brasileira. Poderíamos importar muita coisa melhor. Mas por que não o fazemos? Em parte, deve-se à elite econômica e política. Nunca tivemos uma elite tão rastaquera como a atual. Despreza a cultura. Não se identifica com os clássicos ocidentais. Acha o máximo matricular seus filhos em escola bilíngue somente duplicam a ignorância em duas línguas. Quando viaja, evita os museus. Livrarias? Foge delas como o diabo da cruz. Olha mas não vê o produto de uma civilização. Quer é fazer compras.

O Brasil não tem nenhum museu que possa se aproximar de um congênere europeu. Os nossos são pequenos, pobres. Evidentemente que não seria o caso de termos um Hermitage, mas o país que está entre as maiores economias do mundo não pode se contentar com o que temos. E as bibliotecas? Pífias. Os acervos são restritos e estão desatualizados. E os grandes teatros?  Este triste panorama é produto da crise que vivemos, uma crise estrutural. A República está sem rumo. Em uma linguagem mais direta: o país está uma bagunça. Para os doutores Pangloss de plantão, tudo vai bem. Resta, então, cantar: “Vai, malandra, an an/ Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an/Vai, malandra, an an/Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an.” Ah, bons tempos quando Anita era a Garibaldi.


Marco Antonio Villa, historiador - O Globo

 


terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Quem é a mulher do ano?



Eu sei que os títulos de mulher do ano costumam ser concedidos para celebridades do meio artístico, dos palcos, das câmeras e das passarelas. Isso tem muito a ver com a superficialidade das relações sociais, vulgarmente incapazes de avançar um milímetro sequer sobre as aparências. Ao afirmá-lo, não estou emitindo juízo de valor sobre quem quer que seja.

Já quando olhamos ao nosso redor, provavelmente todos temos a quem outorgar esse destaque. Num círculo mais estreito de relações, onde conhecimentos e sentimentos são mais profundos, quase sempre há alguém que é, a um só tempo, rainha, deusa, leoa, obreira infatigável de incontáveis tarefas, pessoa de vontades contidas e interesses postergados, primeira e espontânea oferta no altar dos sacrifícios. Meu louvor, meu apaixonado louvor à essa multidão anônima de mulheres do ano!

 Ao pesquisar no Google sobre a mulher do ano de 2017, vejo tantas referências à cantora Anitta, que não posso deixar de dizer: tal escolha constrange a nação. É sintoma de que o torneado do corpo se impõe ao torneado da alma, e que as formas obscurecem a beleza e a nobreza das virtudes.  Neste ano de 2017, ninguém se ergueu acima de Heley de Abreu Silva Batista! Foi ela que entrou em luta corporal com um louco incendiário. Foi ela que retirou 25 crianças de uma creche em chamas, salvando-as de morrerem no trágico acontecimento do dia 5 de outubro em Janaúba MG. Horas depois, não resistindo às queimaduras, Heley morreu.

Em João 15:13, numa alusão ao que viria a acontecer consigo mesmo, Jesus diz: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos”. Amor supremo, cuja imposição vem do coração e chega à superação dos mais naturais instintos humanos. Quando enunciou o mandamento do amor, Jesus disse que devemos amar o próximo “como” (tanto quanto) a nós mesmos. Ele não nos exige o que Ele fez. Ele não pediu a Heley o que Heley realizou. Ela agiu voluntariamente. Amor ao próximo além do amor próprio é altruísmo, virtude das almas mais nobres, dos santos, dos heróis, dos que se erguem à reverência de todos nos altares, nos monumentos e nas páginas da História.

Por isso, quando a agenda de 2017 começa a buscar na prateleira seu lugar ao lado das precedentes, eu me uno aos que escolhem Heley de Abreu Silva Batista e digo: Professora, este ano não tem para mais ninguém! Dê um abraço em Jesus por mim.