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terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Anitta e a República dos Rastaqueras

A decadência cultural do país é inquestionável. A ignorância se transformou em política oficial. Quanto mais medíocre, melhor

[a decadência cultural é tamanha que consideram exposições que fazem apologia à pornografia, pedofilia, zoofilia, manifestação artística  e cultural - vide QUEERMUSEU, patrocinada pelo Banco Santander. 
Aludida manifestação foi tema da redação do vestibular FUVEST 2018.
Teve outra manifestação artística cultural no MASP, na qual uma criança tocava um homem nu.]

O Brasil vive uma crise de identidade cultural. Ao longo do século XX, foi recorrente a busca incessante de interpretações do nosso país. A grande migração do Nordeste para o Sudeste e os deslocamentos do campo para a cidade transformaram radicalmente o país. O nascimento das primeiras metrópoles e suas profundas contradições sociais e políticas fomentaram a necessidade de compreender o momento histórico. Tudo era novo, e as antigas leituras não davam conta das transformações que estavam ocorrendo em ritmo acelerado. O velho ufanismo do Conde de Afonso Celso era ridicularizado. O Brasil moderno necessitava da crítica, e não da apologia despolitizada do passado e do presente.

Na literatura, no cinema, nas artes plásticas, na música foi sendo construída a nossa identidade cultural, produto complexo, contraditório, mas que possibilitou estabelecer diálogo entre as diferentes regiões do país, as classes sociais, os desafios políticos e a elite dirigente. A cultura brasileira tinha uma presença no mundo ocidental. Dialogava com o que havia de mais moderno. Em algumas áreas, acabou se transformando em referência para outras culturas. Atualmente, o panorama é muito distinto. A crise de identidade cultural pela qual passamos é a mais profunda da nossa história. Hoje, nada ou quase nada nos une. Somos um país fragmentado, dividido. Não há diálogo na música, na literatura, no cinema, nas artes plásticas. A cultura brasileira nada conta para o mundo.

Nesta conjuntura, é possível compreender como algumas figuras caricatas tomaram conta do cenário cultural. A cantora Anitta é o melhor exemplo. É elogiada como um verdadeiro símbolo do Brasil contemporâneo. Uma representante do país para o mundo. A música “Vai malandra” já foi chamada de novo hino nacional. O reacionarismo da letra (falar em versos, aí já é demais), a desqualificação da mulher, a idealização da favela (é favela mesmo; comunidade não passa de uma tentativa de transmudar pela palavra uma vergonha nacional, aceitar a precarização da moradia e das condições de vida de milhões de brasileiros) é dado de barato, como se fosse algo absolutamente irrelevante. Foi até chamada para cantar o Hino Nacional no último Grande Prêmio de Fórmula 1, em Interlagos — seguindo este caminho, logo teremos como intérpretes Ludmilla ou Pabllo Vittar. No réveillon, na Praia de Copacabana, foi considerada a grande estrela. Brindou o público com frase de rara profundidade filosófica, como uma Hanna Arendt dos trópicos: “Vocês acharam que eu não ia rebolar a minha bunda hoje?”

A decadência cultural do país é inquestionável. A ignorância se transformou em política oficial. Quanto mais medíocre, melhor. Tem de ser rasteiro para ser aceito, fazer sucesso. O Brasil virou a República dos Rastaqueras. No país da Anitta, é indispensável dizer sim, sempre dizer sim. Há o medo manifesto de ser hostilizado por defender uma outra visão de mundo. Os radicais dos anos 1960, hoje em idade provecta, preferiram aceitar passivamente o papel de coadjuvantes. Não perceberam o ridículo. Pior, chancelaram com entusiasmo a cultura da ignorância. Tudo para não perder o proscênio. Em busca da eterna juventude, agem como Peter Pans tupiniquins. Como chegamos a este ponto de degradação? O desaparecimento de um pensamento crítico pode explicar este terrível cenário. A reflexão, fruto da exaustiva pesquisa, desapareceu. Culturalmente — mas não só — o país perdeu o rumo. Paradoxalmente, nunca existiram no Brasil tantas secretarias — estaduais e municipais — dedicadas formalmente à cultura. São centenas. Mas na República dos Rastaqueras, elas servem somente como moeda de troca para garantir a “governabilidade” das prefeituras e governos estaduais.

O Brasil acabou se transformando em recebedor passivo do que há de pior da cultura ocidental, especialmente a americana. Reproduz de forma caricata as manifestações culturais (além do racismo negro) dos setores ditos marginais dos Estados Unidos — que foram mercantilizados a peso de ouro pela indústria cultural. Ao invés da antropofagia cultural, temos o mimetismo caricato.  Não é possível atribuir ao conjunto da cultura ocidental a mediocridade brasileira. Poderíamos importar muita coisa melhor. Mas por que não o fazemos? Em parte, deve-se à elite econômica e política. Nunca tivemos uma elite tão rastaquera como a atual. Despreza a cultura. Não se identifica com os clássicos ocidentais. Acha o máximo matricular seus filhos em escola bilíngue somente duplicam a ignorância em duas línguas. Quando viaja, evita os museus. Livrarias? Foge delas como o diabo da cruz. Olha mas não vê o produto de uma civilização. Quer é fazer compras.

O Brasil não tem nenhum museu que possa se aproximar de um congênere europeu. Os nossos são pequenos, pobres. Evidentemente que não seria o caso de termos um Hermitage, mas o país que está entre as maiores economias do mundo não pode se contentar com o que temos. E as bibliotecas? Pífias. Os acervos são restritos e estão desatualizados. E os grandes teatros?  Este triste panorama é produto da crise que vivemos, uma crise estrutural. A República está sem rumo. Em uma linguagem mais direta: o país está uma bagunça. Para os doutores Pangloss de plantão, tudo vai bem. Resta, então, cantar: “Vai, malandra, an an/ Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an/Vai, malandra, an an/Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an.” Ah, bons tempos quando Anita era a Garibaldi.


Marco Antonio Villa, historiador - O Globo

 


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

De onde vêm as palavras: Greve das mulheres de Atenas e Vitória

As gregas fizeram a greve delas, mas as brasileiras obrigaram os maridos a fazer outra greve, proibida pela Constituição

As esposas dos policiais do Espírito Santo, estas novas “mulheres de Atenas”, cansadas de outra guerra, mostraram ser boas alunas de Lisístrata, uma personagem do grego Aristófanes. Na peça, ela lidera uma greve de sexo em 411 a.C., com o propósito de pôr fim às hostilidades que estavam arruinando a Grécia ontem. Hoje, outras guerras devastam o Brasil. Lisístrata significa em grego “desorganizadora do exército”, papel que não foi cumprido por nossas Lisístratas…
Cerca de cem mulheres se reuniram em frente ao 10˚ Batalhão da Polícia Militar, em Guarapari, no Espírito Santo, para pedir melhoria de salários condições de trabalho da PM capixaba - 04/02/2017 (Vinícius Rangel/Estadão Conteúdo)

Há muitas outras diferenças que separam as antigas gregas das capixabas nesses mais de 2.400 anos. As divergências começam pela greve, que não foi das espírito-santenses e não foi de sexo. As gregas fizeram a greve delas, mas as brasileiras obrigaram os maridos a fazer outra greve, proibida pela Constituição. Assim procedendo, transformaram seus cônjuges em amotinados. Nós precisamos dar às coisas os nomes que as coisas têm e pelos quais são conhecidas. Greve é uma  coisa, motim é outra.

As capixabas não fizeram greve, palavra vinda do Francês grève, nome de uma praça forrada de areia às margens do rio Siena, em Paris, onde trabalhadores se reuniam para reivindicar seus direitos, interrompendo o trabalho.  As mulheres dos policiais amotinados foram designadas abundantemente na mídia por “mulheres”, nem “esposas”, nem “senhoras”. Esta sutileza diz muito dos lugares atribuídos à mulher na sociedade brasileira. E às vezes os conceitos e os preconceitos vêm tão escondidos que requerem uma leitura da estrutura profunda onde se homiziaram.

A palavra mulher veio do Latim mulier para o Português e tornou-se hegemônica sobre seus sinônimos para designar o feminino de homem, mas há complexas variações no uso dos sinônimos quando a mulher é referida em outros contextos.  Lembremos que a matriz latina de mulier para designar o mundo feminino é substituída quando a mulher recorre a médicos ou médicas ginecologistas  para um exame  ginecológico  ou para fazer uma ginecoplastia.  Daí o étimo é o Grego gynaikós, equivalente a “mulier” e “femina” no Latim.

Desde sempre as mulheres têm desempenhado papel importante em momentos decisivos de nossa História. No real, de que são exemplos Ana Quitéria,  Bárbara Heliodora, Chica da Silva e Anita Garibaldi, entre muitas outras. E no imaginário com obras artísticas e literárias famosas, como as três personagens emblemáticas de Jorge Amado, títulos de grandes romances: Gabriela Cravo e Canela, Teresa Batista Cansada de Guerra e Tieta do Agreste.

Mas, como, segundo Hegel, a História só se repete como farsa, desta vez as senhoras do Espírito Santo, esposas de militares, representaram uma farsa e deram ao mundo mais um exemplo do jeitinho brasileiro: seus esposos as contrataram e terceirizaram a greve! [só que as mulheres dos militares não fizeram greve, o que elide a alegada terceirização; elas apenas bloquearam as saídas do quartel e não existe nenhuma forma de considerar tal ato uma greve.
Não existe o menor ampara para alguma instância judicial considerar greve a conduta das mulheres capixabas.] Com tal procedimento, disfarçaram o motim, que tem punições muito mais rigorosas do que a greve.


Transcrito da Coluna do Augusto Nunes