A decadência cultural do país é inquestionável. A ignorância se transformou em política oficial. Quanto mais medíocre, melhor
[a decadência cultural é tamanha que consideram exposições que fazem apologia à pornografia, pedofilia, zoofilia, manifestação artística e cultural - vide QUEERMUSEU, patrocinada pelo Banco Santander.
Aludida manifestação foi tema da redação do vestibular FUVEST 2018.
Teve outra manifestação artística cultural no MASP, na qual uma criança tocava um homem nu.]
O Brasil vive uma crise de identidade cultural. Ao longo do século XX, foi recorrente a busca incessante de interpretações do nosso país. A grande migração do Nordeste para o Sudeste e os deslocamentos do campo para a cidade transformaram radicalmente o país. O nascimento das primeiras metrópoles e suas profundas contradições sociais e políticas fomentaram a necessidade de compreender o momento histórico. Tudo era novo, e as antigas leituras não davam conta das transformações que estavam ocorrendo em ritmo acelerado. O velho ufanismo do Conde de Afonso Celso era ridicularizado. O Brasil moderno necessitava da crítica, e não da apologia despolitizada do passado e do presente.
Na literatura, no cinema, nas artes plásticas, na música foi sendo construída a nossa identidade cultural, produto complexo, contraditório, mas que possibilitou estabelecer diálogo entre as diferentes regiões do país, as classes sociais, os desafios políticos e a elite dirigente. A cultura brasileira tinha uma presença no mundo ocidental. Dialogava com o que havia de mais moderno. Em algumas áreas, acabou se transformando em referência para outras culturas. Atualmente, o panorama é muito distinto. A crise de identidade cultural pela qual passamos é a mais profunda da nossa história. Hoje, nada ou quase nada nos une. Somos um país fragmentado, dividido. Não há diálogo na música, na literatura, no cinema, nas artes plásticas. A cultura brasileira nada conta para o mundo.
Nesta conjuntura, é possível compreender como algumas figuras caricatas tomaram conta do cenário cultural. A cantora Anitta é o melhor exemplo. É elogiada como um verdadeiro símbolo do Brasil contemporâneo. Uma representante do país para o mundo. A música “Vai malandra” já foi chamada de novo hino nacional. O reacionarismo da letra (falar em versos, aí já é demais), a desqualificação da mulher, a idealização da favela (é favela mesmo; comunidade não passa de uma tentativa de transmudar pela palavra uma vergonha nacional, aceitar a precarização da moradia e das condições de vida de milhões de brasileiros) é dado de barato, como se fosse algo absolutamente irrelevante. Foi até chamada para cantar o Hino Nacional no último Grande Prêmio de Fórmula 1, em Interlagos — seguindo este caminho, logo teremos como intérpretes Ludmilla ou Pabllo Vittar. No réveillon, na Praia de Copacabana, foi considerada a grande estrela. Brindou o público com frase de rara profundidade filosófica, como uma Hanna Arendt dos trópicos: “Vocês acharam que eu não ia rebolar a minha bunda hoje?”
A decadência cultural do país é inquestionável. A ignorância se transformou em política oficial. Quanto mais medíocre, melhor. Tem de ser rasteiro para ser aceito, fazer sucesso. O Brasil virou a República dos Rastaqueras. No país da Anitta, é indispensável dizer sim, sempre dizer sim. Há o medo manifesto de ser hostilizado por defender uma outra visão de mundo. Os radicais dos anos 1960, hoje em idade provecta, preferiram aceitar passivamente o papel de coadjuvantes. Não perceberam o ridículo. Pior, chancelaram com entusiasmo a cultura da ignorância. Tudo para não perder o proscênio. Em busca da eterna juventude, agem como Peter Pans tupiniquins. Como chegamos a este ponto de degradação? O desaparecimento de um pensamento crítico pode explicar este terrível cenário. A reflexão, fruto da exaustiva pesquisa, desapareceu. Culturalmente — mas não só — o país perdeu o rumo. Paradoxalmente, nunca existiram no Brasil tantas secretarias — estaduais e municipais — dedicadas formalmente à cultura. São centenas. Mas na República dos Rastaqueras, elas servem somente como moeda de troca para garantir a “governabilidade” das prefeituras e governos estaduais.
O Brasil acabou se transformando em recebedor passivo do que há de pior da cultura ocidental, especialmente a americana. Reproduz de forma caricata as manifestações culturais (além do racismo negro) dos setores ditos marginais dos Estados Unidos — que foram mercantilizados a peso de ouro pela indústria cultural. Ao invés da antropofagia cultural, temos o mimetismo caricato. Não é possível atribuir ao conjunto da cultura ocidental a mediocridade brasileira. Poderíamos importar muita coisa melhor. Mas por que não o fazemos? Em parte, deve-se à elite econômica e política. Nunca tivemos uma elite tão rastaquera como a atual. Despreza a cultura. Não se identifica com os clássicos ocidentais. Acha o máximo matricular seus filhos em escola bilíngue — somente duplicam a ignorância em duas línguas. Quando viaja, evita os museus. Livrarias? Foge delas como o diabo da cruz. Olha mas não vê o produto de uma civilização. Quer é fazer compras.
O Brasil não tem nenhum museu que possa se aproximar de um congênere europeu. Os nossos são pequenos, pobres. Evidentemente que não seria o caso de termos um Hermitage, mas o país que está entre as maiores economias do mundo não pode se contentar com o que temos. E as bibliotecas? Pífias. Os acervos são restritos e estão desatualizados. E os grandes teatros? Este triste panorama é produto da crise que vivemos, uma crise estrutural. A República está sem rumo. Em uma linguagem mais direta: o país está uma bagunça. Para os doutores Pangloss de plantão, tudo vai bem. Resta, então, cantar: “Vai, malandra, an an/ Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an/Vai, malandra, an an/Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an.” Ah, bons tempos quando Anita era a Garibaldi.
Marco Antonio Villa, historiador - O Globo
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