A promoção de Renan Calheiros a relator da CPI da Pandemia confirma que, no Brasil abastardado pelo Supremo, investigado investiga
A linhagem dos grandes inventores de nomes nasceu na entrada dos cinemas e viveu seus momentos mais brilhantes nos anos 50. O show de criatividade era escancarado nos letreiros riscados a giz que identificavam o filme em cartaz. Ninguém conhecia nenhum dos autores daquelas obras de arte, mas eles sabiam perfeitamente com quais plateias lidavam. Sabiam, por exemplo, que quem gostava de faroeste norte-americano não via com entusiasmo títulos reduzidos a uma palavra só. Pouco importava que nos Estados Unidos e em Portugal o clássico estrelado por Alan Ladd fizesse sucesso desde o lançamento, em 1953, com o nome do principal personagem: “Shane”. É pouco para o Brasil, decidiu algum anônimo artista escondido na empresa distribuidora — e Shane foi substituído por um irresistível chamariz em maiúsculas: OS BRUTOS TAMBÉM AMAM.
Em Portugal, aliás, a regra era manter o título original ou traduzi-lo literalmente. Filmado em 1969, The Wild Bunch tornou-se nas telas lusitanas Uma Quadrilha Selvagem. Por aqui, foi rebatizado com um achado que induzia o mais pacífico cinéfilo a levar as duas mãos a coldres imaginários já na passagem pela bilheteria: MEU ÓDIO SERÁ TUA HERANÇA. É claro que esses mestres da hipérbole não admitiriam que fosse confinado em míseras cinco letras — Giant — o superfaroeste da safra de 1956 protagonizado por Elizabeth Taylor, Rock Hudson e James Dean. Os portugueses se deram por satisfeitos com um insosso Gigante. Também por isso, merecia figurar nos créditos de abertura, logo abaixo do trio estelar, o reinventor do nome no Brasil: ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE.
A caminho da extinção nos letreiros de cinema, a tribo sobreviveu graças ao surgimento na Polícia Federal, no início deste século, de uma ramificação igualmente inventiva e bem mais prolífica. Por lei, a escolha do nome de uma operação da PF cumpre ao delegado que vai chefiá-la. Com a intensificação das ofensivas, os doutores recorreram a todas as modalidades de cobra, macaco, peixe e outros bichos antes da capitulação: aquilo era coisa para especialistas. E então se sucederam os surtos criativos.
Em outros países, operações do gênero têm denominações sisudas, que usam terno escuro, falam baixo e jamais sorriem. No Brasil, reina a imaginação sem fronteiras. Há um pouco de tudo na lista de operações: erudição (Satiagraha, Ararath), bom humor (Fatura Exposta), poesia (Rosa dos Ventos), apreço por superlativos (Anel de Gigantes, Ad Infinitum) ou mistério (Ratatouille, Ouvidos Moucos). Há os irônicos: Tergiversação, por exemplo, inspirou-se na palavra que engordara o vocabulário indigente de Dilma Rousseff naquele semestre. E há os inevitáveis, como referências à pandemia no balanço de 2020. A lista anual incluiu, entre outras, as operações Virus Infectio, Placebo, Calvário e Mercadores do Caos.
José Renan Vasconcelos Calheiros, natural de Murici, entrou no saloon da baixa política pela última porta do corredor à esquerda de quem chega: nos anos 70, enquanto cursava a Faculdade de Direito em Maceió, matriculou-se no PCdoB e logo se elegeria deputado estadual com o apoio da seita comunista. O rebanho tinha mudado de bússola. Trocara a China pela Albânia, Mao Tsé-tung por Enver Hoxja, o mato pela capoeira. O livro de pensamentos do ditador albanês era tão profundo que as cabras montanhesas daquele grotão europeu poderiam, como a formiguinha de Nelson Rodrigues, atravessá-lo com água pelas canelas.
Quem serve voluntariamente nas galés de um Enver Hoxja embarca em qualquer canoa, confirma o ziguezague de Renan. Achou boa ideia transformar o prefeito e depois deputado federal Fernando Collor em alvo predileto. “É o príncipe herdeiro da corrupção”, recitou anos a fio. Achou melhor ainda a ideia de aceitar o convite do governador Fernando Collor e assumir a Secretaria da Educação. “Apesar de adversários no passado, sempre fomos amigos”, fantasiou. Nunca seriam amigos. Foram cúmplices quando as circunstâncias recomendavam.
O clássico da chanchada pornopolítica em que contracenou com a jornalista Mônica Veloso apressou a barganha repulsiva: em 4 de dezembro de 2007, para escapar da cassação do mandato por quebra de decoro (corrupção graúda, em língua de gente), renunciou ao comando do Senado e seguiu usando a carteirinha de congressista. Voltou ao palco meses mais tarde. Arrendado por Lula para liderar a guerra pelo sepultamento da CPI da Petrobras, o general da banda podre convocou para o combate o de novo comparsa Fernando Collor, rebaixado a ajudante de ordens, e foi à luta.
Nas semanas seguintes, Renan foi mais Renan do que nunca. Caprichando no sotaque de cangaceiro, insultou quem dele discordava, valeu-se de chantagens e extorsões para inibir oposicionistas, achincalhou o Conselho de Ética, desmoralizou a CPI e conseguiu cumprir a missão abjeta que Lula lhe encomendara. De lá para cá, continuou a fazer o que pode e o que é proibido para transformar o Senado num clube de cafajestes da terceira idade.
Em nações civilizadas, o Atleta da Odebrecht estaria na cadeia há muito tempo. Num Brasil abastardado pelo Supremo Tribunal Federal, Renan segue driblando a capivara cevada pela pilha de processos e inquéritos. Em vez de temporadas na gaiola, coleciona mandatos na presidência do Senado. Até agora são três. Vai começar a campanha para chegar ao quarto na quinta-feira, fantasiado de relator da CPI da Pandemia. Só no País do Carnaval um investigado investiga. O criador do codinome do senador merece alguma condecoração. Sem sair da Praça dos Três Poderes, sem se afastar de cargos relevantes, Renan Calheiros foge da Justiça há quase 30 anos. É o nosso Usain Bolt da corrupção. É um tremendo Atleta.