Moro incorporou-se de corpo e alma ao projeto de Bolsonaro
Bolsonaro continua em campanha. Levantamento feito pela Folha de São Paulo mostrou que o ataque ao PT foi o tema dominante de suas entrevistas pós-vitória. Vale a comparação com Dilma que ignorou Aécio e anunciou que sua prioridade seria o combate à corrupção, que não deixaria ‘pedra sobre pedra, doesse a quem doesse’. Como se vê, acusá-la de estelionato eleitoral é injusto.
Bolsonaro e seu fiel escudeiro Paulo Guedes parecem não se terem dado conta de que a eleição acabou e que agora lhes cabe a dura tarefa de ser governo. O Czar da economia sugeriu uma ‘prensa’ no Congresso, demonstrou descaso absoluto pelo orçamento em elaboração e afirmou que contrariar suas ideias seria contribuir com o retorno do PT ao Poder. Eduardo Bolsonaro, requintado como de costume, afirmou que o próximo presidente da Câmara “tem que ter um perfil trator, porque a gente sabe como vai ser a oposição da esquerda”. Contudo, se olhasse os números, o deputado concluiria que a esquerda foi batida nas urnas, que não terá força para barrar projetos do governo, incluindo os que exigirem quórum qualificado.
Até o momento, a despeito da profusão de propostas disponíveis, Guedes não se deu ao trabalho de apresentar detalhes de seu projeto para reformar a previdência. Propôs uma ‘prensa’ no Congresso por propor, um ato reflexo de quem tem o costume de tratar apenas com subordinados obedientes. Mas o Czar precisará mudar seus hábitos e costumes para entender que seu posto, com ou sem a chancela Ipiranga, pede que ouça parlamentares eleitos pela sociedade para representá-la, parlamentares tão legitimamente eleitos pelas urnas quanto seu comandante.
De concreto, tudo que se ouviu de Guedes foi que ele teria sido o emissário do convite a Sergio Moro. Ou seja, o folclórico Posto Ipiranga virou uma franquia. Com a adesão de Moro, a equipe de Bolsonaro passou a contar com dois nomes de peso, celebridades com brilho próprio, capazes de ofuscar as notabilidades de aldeia — Onyx, Bebianno, Malta e outros menos votados– que cercam o presidente. O choque entre estes corpos de grandeza e órbita distintas é uma questão de tempo, crônica de uma morte anunciada.
O convite e o aceite de Moro dominaram o noticiário da semana. Provavelmente, este foi o mais alto e último ato da campanha de Bolsonaro. O magistrado incorporou-se, se é que já não o havia feito antes, de corpo e alma ao projeto político do presidente eleito. Na chegada, mostrando sua disposição para jogar para o time, perdoou Onyx Lorenzoni pelas propinas recebidas. Com certeza, o veterinário não será o único a receber o tratamento complacente reservado aos amigos que, imediatamente, deixam de ser brasileiros como os demais. Como declarou Bolsonaro no hospital, a questão central é a ideologia, não a corrupção.
O antipetismo radical e o conservadorismo moralista colocaram o capitão e o magistrado no mesmo barco. Moro não mostrou qualquer dificuldade para apoiar as propostas de Bolsonaro para a área da segurança pública, área em que se dará o verdadeiro combate ao crime organizado. Moro declarou ser favorável à redução da idade penal, ao porte de armas por civis e ao relaxamento do excludente de ilicitude.
Este último item é a mola mestra da proposta de Bolsonaro para a segurança pública. Seu ponto de partida se encontra na declaração do General Heleno, para quem “direitos humanos são para humanos direitos. Essa percepção muitas vezes não tem acontecido. Estamos deixando a desejar no combate à criminalidade”. Ou seja, há dois tipos de cidadãos, os direitos e os ‘vagabundos’ e a aplicação da lei deve levar em conta esta distinção fundamental. Aceita tal premissa, segue a conclusão de Wilson Witzel: “Também tem de morrer. Está de fuzil? Tem de ser abatido”. A visão de Bolsonaro – basta ver suas manifestações sobre a chacina da Candelária – segue a mesma toada. [o bandido não tem o direito de ser considerado cidadão e nem tem o direito de ter direitos.]
Guardadas as devidas proporções, estes são os princípios que Moro usou ao privilegiar prisões preventivas como estratégia de combate à corrupção. Se o juiz está convencido do crime, não há porque adiar a execução da pena, pois tudo que resta à defesa é recorrer a chicanas legais para protelar a decretação da prisão. A possibilidade de o juiz formar juízo equivocado e agir de forma arbitrária é desconsiderada. E, no caso da Lava Jato, esta convicção passou a ser compartilhada com a Polícia Federal, como mostram os casos movidos contra as universidades federais de Santa Catarina e Minas Gerais.
Bolsonaro e os governadores eleitos no Rio e São Paulo querem que princípios análogos orientem a ação da polícia no combate à criminalidade. A premissa básica é a mesma: tudo que restaria aos ‘vagabundos’ seria a protelação da execução de suas penas. A diferença, contudo, é que caberá à autoridade policial fazer o julgamento e definir a pena que, no limite, pode ser a execução sumária. Em uma palavra, ‘vagabundos’ mereceriam ser tratados como cidadãos de segunda classe e como tais, na visão de Witzel, passíveis de serem abatidos com “tiros na cabecinha”.
Moro classificou esta e outras ideias do presidente eleito e seus aliados como moderadas e razoáveis. Ao fazê-lo, deixou claro que sua adesão ao governo tem raízes profundas, que é um conservador convicto e engajado e que, enquanto tal, defende dotar de poderes excepcionais as autoridades encarregadas de reprimir o crime organizado. Ou seja, Moro e os conservadores a quem aceitou servir desconsideram a conhecida máxima liberal, aquela que diz que o poder corrompe e que o poder absoluto corrompe de maneira absoluta. A proposta Bolsonaro para a segurança pública, em última análise, dota a autoridade policial de um poder ilimitado. Não há um pingo de razão e moderação neste tipo de proposta. Antes o contrário. Não é a primeira vez que se ouvem brados vindos do Ipiranga. No de 1822, o conservadorismo autoritário prevaleceu sobre os princípios liberais.
Fernando Limongi, professor e pesquisador - Valor Econômico