J. R. Guzzo
Para ministro, o direito de pensar não se aplica ao que o cidadão possa achar do funcionamento do sistema de votação
O ministro Alexandre de Moraes acaba de apresentar uma inovação no conceito universal da liberdade de expressão.
De acordo com o que disse numa palestra, o direito de pensar não se
aplica ao que o cidadão possa achar das urnas eletrônicas do TSE.
Apresentar dúvidas, ou críticas, sobre o seu funcionamento é um ato
contra a democracia, sustenta Moraes. “De forma alguma podemos aceitar
essa afirmação totalmente errônea de que isso é liberdade de expressão”.
Não se admite tal coisa, segundo ele, “nem nos Estados Unidos”.
Não dá para entender direito esse “nem”, e menos ainda a revelação de
que falar mal do sistema de votação é um delito na lei americana – nunca
se ouviu falar, desde Thomas Jefferson, que alguém tenha sido indiciado
em processo penal nos Estados Unidos por fazer alguma coisa parecida.
Mas, seja como for, Moraes está dizendo o seguinte: é proibido achar que
as urnas usadas no Brasil possam dar problema. Isso, em sua opinião, é
atentar contra o regime democrático" – e “atentados contra a democracia”,
segundo afirmou na palestra, “não são exercício da liberdade de
expressão”.
Desde que surgiu a ideia de que os seres humanos têm o direito de dizer o que pensam, na Grécia de 2.500 anos atrás, ninguém tinha sustentado que esse direito não se aplica a quem duvidar de algum mecanismo declarado infalível pela autoridade pública.
Desde que surgiu a ideia de que os seres humanos têm o direito de dizer o que pensam, na Grécia de 2.500 anos atrás, ninguém tinha sustentado que esse direito não se aplica a quem duvidar de algum mecanismo declarado infalível pela autoridade pública.
E porque seria ilegal contestar
alguma coisa, qualquer coisa, que o STF e os sábios da hora consideram
infalível?
Era infalível, por exemplo, a noção de que o Sol girava em
volta da Terra – o sujeito podia acabar na fogueira da Inquisição por
dizer uma coisa dessas.
É óbvio que a vida humana se tornaria impossível
se os governos continuassem pensando assim; por isso, justamente,
mudaram de ideia a respeito.
Mais difícil de entender, ainda, é a
conclusão de que as urnas do TSE não falham.
Quem disse que as urnas do TSE são infalíveis?
O sistema de votação e
apuração de eleições em vigor no Brasil não é uma lei da física – é o
produto de máquinas, e por definição qualquer máquina pode falhar.
Os
maiores bancos brasileiros, por exemplo, investiram R$ 35 bilhões em
tecnologia de informação no ano passado – isso mesmo, 35 bi, e só em
2022. Apesar de todo esse esforço, o Banco Itaú, o maior banco do país,
acaba de passar quase um dia inteiro sem funcionar, paralisado por
falhas nos seus sistemas eletrônicos.
Porque não poderiam acontecer
problemas de funcionamento nas urnas do TSE?
Além do mais, elas não são
utilizadas em nenhuma democracia séria do mundo; nenhuma.
Será que refletir sobre isso é tentativa de golpe de Estado? Não fecha.
J. R. Guzzo, colunista - O Estado de S. Paulo