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quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Toffoli já condenou os supostos agressores de Moraes - VOZES

 Deltan Dallagnol

Justiça, política e fé

 Dias Toffoli Alexandre Moraes

Ministro Dias Toffoli autoriza Alexandre de Moraes, também do STF, a interferir no processo do qual o próprio Moraes é vítima| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil / Arquivo

“Um mau começo leva a um mau fim”, disse, muito sabiamente, o dramaturgo e poeta grego Eurípides (480-406 a.C). E nada recentemente teve um começo tão ruim quanto a investigação determinada pelo Supremo Tribunal Federal contra a família Mantovani, suspeita de agredir o ministro Alexandre de Moraes e seu filho na Itália
O que começou com um provável desentendimento entre as famílias na área vip do aeroporto de Roma está se tornando, aos poucos, um exemplo perfeito de como os donos do poder se utilizam do aparato estatal para, do topo de seus cargos, subjugar, oprimir e perseguir, de forma absurda, autoritária e ilegal, aqueles que os desagradam.
 
A mais recente e talvez pior ilegalidade desse caso foi a decisão do ministro Dias Toffoli, do STF, que autorizou o ministro Alexandre de Moraes, sua esposa e seus filhos a atuarem como “assistentes da acusação”, muito embora a Procuradoria-Geral da República não tenha sequer apresentado acusação formal contra alguém neste caso. 
Por que essa decisão demonstra que Toffoli já condenou a família Mantovani? 
A lei permite que as vítimas de crimes possam atuar durante a tramitação de uma ação penal para fazer valer seus direitos, podendo, por exemplo, sugerir provas, solicitar perícias, fazer perguntas às testemunhas, participar dos debates orais e recorrer das decisões.

A decisão de Toffoli que colocou Moraes como assistente de acusação tem um problema imenso que vai muito além da questão formal prevista na lei.

A lógica da lei é garantir que a vítima tenha voz no processo penal e possa atuar diretamente para impedir, por exemplo, a absolvição indevida de um criminoso. 
Por isso, só há assistente de acusação depois de se definir quem é vítima e quem é criminoso. Isso é definido no momento da acusação formal, da chamada “denúncia”, e não quando o caso ainda está na fase de investigação.
 
De fato, é no momento da denúncia que o Ministério Público aponta sua conclusão sobre a investigação, acusando alguém da prática de um crime e indicando as provas que o levaram a tal conclusão. 
Assim, é só a partir desse momento da “denúncia” que se sabe quem foi o autor do crime e quem foi a vítima. 
Antes da denúncia, há meras hipóteses a serem investigadas. 
Nesse sentido, o Código de Processo Penal é claro, no artigo 268, ao estabelecer que o assistente de acusação pode atuar nas fases da “ação pública”, que se instaura após o juiz receber a denúncia feita pelo Ministério Público.

O relator do caso no STF já adotou um lado: o de Moraes. Toffoli mandou às favas a investigação das duas hipóteses e já prejulgou qual é a verdadeira.

A razão disso tudo fica clara no caso da família Mantovani: como está na fase de investigação, nem a polícia nem o Ministério Público chegaram a conclusões sobre o que de fato aconteceu. 
Sobre a suposta agressão no aeroporto de Roma, há acusações trocadas de lado a lado. 
Há, por isso, duas versões ou hipóteses investigativas.
 
De um lado, o ministro Alexandre de Moraes diz que foi chamado de “bandido” e “comunista” e afirma que o empresário Roberto Mantovani teria dado um tapa em seu filho e derrubado seus óculos. 
Se essa versão se confirmar, a família Mantovani pode ser acusada como criminosa e o ministro e sua família seriam vítimas.
De outro lado, a família Mantovani diz que eles foram xingados e agredidos verbalmente pelo ministro. Um vídeo da briga que mostra Alexandre de Moraes chamando alguém de “bandido” foi divulgado recentemente nas redes sociais.  
Se essa versão se confirmar, é o ministro que pode – em tese, se a Justiça fosse cega – ser acusado como criminoso, enquanto a família Mantovani seria vítima.
 
O caso pode acabar ainda com um choque de versões, o famoso “diz que-diz que”, a palavra de um contra a do outro. 
Nesse caso, ninguém será considerado acusado e ninguém será considerado vítima. 
O caso será arquivado por não haver provas suficientes que permitam chegar à conclusão sobre o que aconteceu.
 
A decisão de Toffoli que colocou Moraes como assistente de acusação tem um problema imenso que vai muito além da questão formal prevista na lei. O problema é que ela demonstra que o relator do caso no STF já adotou um lado: o de Moraes. 
Toffoli mandou às favas a investigação das duas hipóteses e já prejulgou qual é a verdadeira. 
Ao aceitar o ministro como assistente de acusação, Toffoli passa uma mensagem clara de que Moraes e sua família são as vítimas, descartando por completo os depoimentos da família Mantovani, que passaram a ser tratados como criminosos antes da conclusão das apurações. 
É quase como se a família Mantovani já tivesse sido denunciada, julgada e condenada, e o STF estivesse apenas cumprindo os passos de um checklist para, no fim, poder colocar todos na cadeia e jogar a chave fora, num julgamento em tempo recorde e com penas desproporcionais como fez quando julgou inimigos da Corte como Daniel Silveira e os réus do 8 de janeiro.

Vemos o esfacelamento do império das leis, substituído gradativamente pelo império das pessoas, dos donos do poder no Brasil.

Nesta segunda-feira (30), a PGR recorreu da decisão de Toffoli, afirmando, corretamente, que se tratava de um privilégio pessoal incompatível com a democracia admitir Alexandre de Moraes como assistente de acusação, além de ser um desrespeito às funções constitucionais do Ministério Público, único órgão com poder de dar início à ação penal.

O prejulgamento do Estado contra a família Mantovani transpassa todo esse caso. 
Embora haja diferentes versões do episódio, foi a família Mantovani que foi recebida pela Polícia Federal assim que chegou ao Brasil e foi levada para prestar depoimento. 
O mesmo não aconteceu com o ministro Alexandre de Moraes. Em seguida, houve um direcionamento ilegal do caso para ser julgado pelo amigo – ops, é que ele tem fama de “amigo” – colega Toffoli no STF
Os Mantovani são cidadãos comuns, empresários, sem foro privilegiado. Não há foro privilegiado pela condição da suposta “vítima”.  
É um absurdo que o colega de Moraes julgue o caso.

Já tínhamos visto corruptos usurparem o poder, agora vemos a escalada do arbítrio judicial.

Os Mantovani foram, também, alvos de medidas invasivas como buscas e apreensões, o que é absolutamente sem precedentes na história do Brasil para investigar um possível xingamento. 
Em 18 anos como procurador, jamais vi nada parecido para apurar crimes contra a honra. 
A medida tem cara de pesca probatória (fishing expedition) para procurar outra coisa que incriminasse a família. Não houve buscas sobre o ministro Alexandre.
 
Como se já não fosse muito, as imagens do aeroporto chegaram ao Brasil, mas Toffoli negou acesso à defesa para cópia e impôs sigilo sobre o material, quando, como bem afirmou a Procuradoria-Geral da República, não há razão para sigilo. Fica feio, mais uma vez. 
Parece que se quer controlar a versão dos fatos que vai a público. 
A decisão de Toffoli pode ter a ver com o fato de que a polícia italiana desmentiu a versão do ministro Alexandre, ao dizer que não houve agressão ao filho do ministro, apenas um leve encostar nos óculos do rapaz. 
Segundo os advogados dos Mantovani, as autoridades italianas não enxergaram crime no imbróglio.
E em mais uma demonstração de falta de imparcialidade da atuação da Justiça, a polícia judiciária brasileira quebrou os protocolos no seu trabalho. A análise das imagens foi feita por um agente, e não por um perito.  
Um perito acusou a irregularidade e foi instaurada uma investigaçãonão contra quem cometeu a irregularidade, mas contra o perito que a apontou! Segundo a revista Veja, o diretor-geral da Polícia fez chegar a tal perito a mensagem de que ele estaria atrapalhando e ajudando os supostos agressores de Moraes. 
Se isso for verdade, mostra, para além da parcialidade do trabalho da polícia, uma interferência política do governo Lula nas investigações, em favor de Moraes.
 
Tudo é muito grave. O recurso da PGR é um alento, mas vemos o esfacelamento do império das leis, substituído gradativamente pelo império das pessoas, dos donos do poder no Brasil.  
Já tínhamos visto corruptos usurparem o poder, agora vemos a escalada do arbítrio judicial.

Pobre país. Já houve imensas injustiças cometidas na cúpula do Judiciário, sucedendo àquelas do Congresso, mas ainda há tempo de evitar que mais essa investigação, que teve um péssimo início, tenha um final pavoroso reservado para os inimigos do STF: penas injustas e desproporcionais para pessoas sem culpa demonstrada.

Deltan Dallagnol, coluna na Gazeta do Povo - VOZES


domingo, 6 de janeiro de 2019

O menino da Rua do Cupim

“A ministra Damares cumpre um duplo papel no governo: provoca a oposição em relação à identidade de gênero e sai em defesa da segurança das crianças e suas famílias”

Damares Alves, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, já é uma estrela da nova equipe de governo de Jair Bolsonaro. Pastora evangélica, roubou a cena entre os seus pares ao afirmar, logo após a posse, para um grupo de apoiadores, que “menino veste azul e menina veste rosa”. Como quase tudo que acontece entre amigos, alguém gravou e vazou nas redes sociais a frase polêmica, que viralizou e levantou um debate sobre identidade de gênero muito maior do que aquele que ela própria pretendia.

A oposição e a imprensa atravessaram a rua para escorregar na casca de banana. Apontada pela mídia como patinha feia da equipe ministerial, Damares deu a volta por cima durante entrevista à GloboNews, na qual driblou os craques do jornalismo político da emissora com respostas que miravam os eleitores de Bolsonaro e não os seus interlocutores. Falou o que eles gostariam de ouvir. Não foi à toa, portanto, que o escritor, dramaturgo e jornalista Aguinaldo Silva disparou no Twitter: “Venderam a ministra Damares como uma espécie de “maluquete xiita” e ontem ela provou que na verdade é outra coisa: uma mulher conservadora, sim. Mas sensata, convencida do que diz, preparadíssima e disposta a fortalecer os vínculos na célula mater da sociedade, que é a família.”

O novelista sabe das coisas, é um premiado campeão de audiência no horário nobre da tevê brasileira e mais do que um observador arguto da revolução dos costumes sociais e políticos no Brasil, que já dura meio século. É um protagonista dessa revolução, ao lado de outros autores. Damares reagiu às críticas que recebeu com o argumento que repete à exaustão: “Fiz uma metáfora contra a ideologia de gênero, mas meninos e meninas podem vestir azul, rosa, colorido, enfim, da forma que se sentirem melhores.” Garantiu que não haverá retrocesso em termos de direitos adquiridos, em matéria de identidade de gênero. E partiu para a ofensiva num tema que explica muita coisa na eleição de Bolsonaro e que a oposição ainda não captou: a defesa das crianças e da família como instituição.

Ao contrário do que muitos imaginam, Damares não é só a pastora evangélica e assessora parlamentar que deu uma rasteira no chefe, o ex-senador Magno Malta, e virou ministra em seu lugar. É uma militante reconhecida do movimento em defesa das crianças que sofrem de depressão e outros distúrbios psicológicos, que têm impactado os altíssimos indicadores de suicídio e automutilação entre pré-adolescentes e adolescentes no Brasil. “Pobre, gay, mulato e abençoado”, Aguinaldo Silva, o menino da Rua do Cupim, no Recife, sacou que a ministra sabe o que está fazendo.


(...)

Identidade de gênero
Aguinaldo já escreveu mais de 100 mil páginas de livros, novelas, séries, minisséries, peças de teatro, crônicas, artigos e reportagens, sem contar os textos do seu blog, no qual faz uma espécie de striptease da sua vida intelectual: “Aos 75 anos, escrevo todos os santos dias, sem falhar carnaval, Natal, ano-novo ou qualquer feriado. Não preciso fazer como o general Coriolano, da tragédia de Shakespeare, e ir à praça pública mostrar minhas muitas cicatrizes. Minhas 14 novelas e meus 16 livros estão aí para isso”.

A chamada pauta identitária de gênero virou uma armadilha política. Serviu para que o PT saísse do isolamento após os escândalos de corrupção que protagonizou no poder e o impeachment de Dilma Rousseff. O movimento “#EleNão” foi uma ponte com as manifestações de gênero e deu sustentação à campanha de Fernando Haddad, principalmente depois da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entretanto, como no caso de Hillary Clinton, nas eleições norte-americanas, é uma agenda progressista, mas ideologicamente minoritária na sociedade. 

 Espertamente, foi associada por Bolsonaro à desagregação da família, uma tragédia para os mais pobres, principalmente numa conjuntura de desemprego em massa.  Damares cumpre um duplo papel no governo: de um lado, espicaça a oposição em relação a um tema no qual a opinião pública ainda é conservadora e, majoritariamente, está ao lado de Bolsonaro; de outro, se propõe a enfrentar um problema que as políticas públicas oficiais, segmentadas, não deram conta de resolver. A atenção dada a gestantes, idosos e crianças, por exemplo, é estanque e não cuida da segurança da família como um todo. Quando fala em virar esse jogo, Damares sabe que é música para os eleitores do capitão. A estratégia de penetração dos pastores evangélicos nas comunidades pobres do país é focada exatamente nisso. Hoje, é uma experiência exitosa de trabalho social, religioso e político, que comeu o mingau eleitoral pelas beiradas.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - CB