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quinta-feira, 2 de junho de 2022

Lula idolatra Lula, e não mostra o seu projeto para o país

Para se afirmar, deslegitima os outros, e reluta em mostrar seu plano para "garantir o fim da fome, o fim da miséria e o pleno emprego" 

[em síntese: o traste não tem plano de Governo, não tem noção do que fazer e tem medo das ruas.]  

Lula é personagem difícil de ser rotulado, enquadrado numa moldura. [era; o rotulem de traste e logo perceberão que cai como uma luva.]

Esquerdista? Talvez. Populista? É possível. Sobrevivente, com certeza — da migração do agreste pernambucano para São Paulo; do sindicalismo metalúrgico, e dos 42 anos de profissional da política, mais da metade do seu tempo de vida.

Seu melhor retrato nasceu da argúcia do humorista e do polimento do escritor Millôr Fernandes. Disse tudo em sete palavras: “O Lula é viciado em si mesmo.”

Reconheceu, tempos atrás: “Tem hora em que estou no avião e, quando alguém começa a falar bem de mim, meu ego vai crescendo, crescendo, crescendo… Tem hora em que ocupo, sozinho, três bancos com o meu ego.”

Lula cada dia mais idolatra Lula, principalmente nesta temporada eleitoral por ele transformada em campo de batalha pela absolvição nas urnas — algo que ainda não conseguiu nos tribunais.

Aos 76 anos, aproveita a que talvez seja sua última campanha para lapidar a imagem da Encarnação do Povo. É do jogo. O problema é que, para se afirmar, ele deslegitima todo mundo. Exemplos recentes:

Políticos no poder? “[Joe] Biden nunca fez um discurso para dar US$ 1 dólar para quem está morrendo de fome na África.”

Partidos? “O PFL acabou, agora quem acabou foi o PSDB e o PT continua forte, crescendo.”

Empresários? “Essa gente deveria vir de joelho conversar com a gente.”

Brasil? “Este é um país de uma elite escravista. O escravismo ainda está, sabe, contido na célula de cada representante da grande elite brasileira.”

Lula contra tudo e contra todos é imagem em sépia das suas quatro décadas sem sair de cima de um palanque.

Em 2003 se queixava da “herança maldita” do governo Fernando Henrique Cardoso.

Em 2022 anuncia que, se eleito, vai pegar um país muito pior do que o recebido vinte anos atrás.

Lula, nesses cultos de adoração de si próprio, pode até ter alguma razão em cada sílaba do que anda dizendo.

É pena que, a quatro meses da eleição, ainda relute em mostrar seu plano para  “garantir o fim da fome, o fim da miséria, o pleno emprego e fazer o Brasil virar protagonista internacional”.  
Esse Brasil Potência nunca antes aconteceu na história deste paísnem mesmo na década e meia de governos lulistas.

José Casado, colunista - VEJA


quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Em nome da corrupção - Carlos Alberto Sardenberg

Coluna publicada em O Globo - Economia 16 de janeiro de 2020

Parlamentares articulam ressalva para determinar que juiz de primeira instância não decrete medidas contra eles

Há dois movimentos opostos no ambiente político e jurídico de Brasília. Um tem o objetivo de reforçar o processo de combate à corrupção. O outro, de torná-lo tão complicado e confuso, a ponto de ser impossível.O primeiro movimento é simples: trata-se de aprovar no Congresso legislação que determine a prisão após sentença em segunda instância. O objetivo é claro: trata-se de responder à decisão do STF que, por 6 votos a 5, determinou que o condenado só pode ser preso após julgados todos os recursos, em todas as instâncias. Na teoria, seria a prisão em quarta instância.

Os garantistas, dizendo-se defensores do sagrado direito humano de defesa, dizem que a norma civilizada determina que ninguém pode ser preso antes do julgamento do último recurso
Se isso for verdade, eis aqui uma relação de países bárbaros: Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Alemanha, França e Espanha. Lá, condenados vão em cana em primeira instância.

Na verdade, tirante o democrático e civilizado Brasil, os demais países da ONU também caem na barbárie, pois adotam a regra de prisão em primeira ou segunda instância, como tem observado com notável clareza, e insistência, o jurista e escritor José Paulo Cavalcanti Filho.  
Ficamos assim, portanto: 
só o Brasil das quatro instâncias respeita o direito universal de defesa. 
Na prática, porém, é um tanto diferente: criminosos ricos, de colarinho branco ou bem colocados nas instituições, capazes de contratar advogados habilidosos o suficiente para manipular a infinidade de recursos e recursos de recursos dos processos brasileiros, além de contar com, digamos, a simpatia de muitos juízes, nunca vão em cana.  
Os outros, ora, quem se importa?

Mas o pessoal que pretende melar o combate à corrupção quer mais. Saíram recentemente com duas espertezas — quer dizer, espertezas, não, pois o sujeito pode ser esperto para o bem. No caso, são duas safadezas.

A primeira foi a introdução do juiz das garantias. Há uma interessante discussão jurídica sobre o sistema, cujo objetivo seria dar mais segurança ao julgamento. Resumindo: o juiz das garantias prepara o processo — determina busca e apreensão, manda produzir as provas etc. Estando tudo pronto, o processo passa para o juiz de instrução e julgamento.
Parece bom, mas não para o Brasil do momento. Nem a intenção foi aperfeiçoar o sistema: foi simplesmente criar uma quinta instância, como notaram Cavalcanti Filho e Modesto Carvalhosa.

Basta que o juiz de julgamento peça novas provas e novas medidas cautelares. Quer dizer, a primeira instância se transformará em duas e, lógico, vai demorar ainda mais.
Além disso, como foi uma sacada de última hora, não ficou nada claro como o sistema seria introduzido e para quais instâncias valeria. Tanto foi assim que o presidente do STF, Dias Toffolli, que havia apoiado a medida, adiou sua aplicação por seis meses. Estava na cara que não havia a menor condição da entrada em vigor em 23 de janeiro próximo. O objetivo só podia ser um: criar confusão, paralisar os processos logo na dupla primeira instância.

Moro havia pedido o veto a esse dispositivo. O presidente Bolsonaro não vetou. O processo de Flávio Bolsonaro está na primeira instância. Bom, ficou para daqui a seis meses, mas o caso continua aí. A segunda safadeza foi descrita na coluna de Merval Pereira na edição de ontem. Resumindo: com o fim do foro privilegiado, todos os processos envolvendo deputados e senadores vão para a primeira instância. Mas os parlamentares estão articulando uma ressalva para determinar que o juiz de primeira instância não poderá decretar medidas cautelares contra deputados e senadores. Não poderão, por exemplo, determinar quebras de sigilo ou prisão preventiva. Direto ao ponto, não se poderá produzir provas.

Agora, acrescente aí o juiz das garantias. Se este não poderá determinar as medidas cautelares, como o juiz de julgamento julgará? Absolvição certa — e aí já vai bem para as instâncias infinitas. Tudo considerado: o combate à corrupção será mantido se o Congresso aprovar a prisão em segunda instância e derrubar todo o resto, juiz de garantias e a garantia extra a deputados e senadores.

Carlos Alberto Sardenberg, jornalista - Coluna em O Globo


 

sábado, 6 de abril de 2019

Militares tentam mudar estilo Bolsonaro

"A gente chega e diz: 'Pô, Mourão, falou demais! (...)'. Ele reconhece, e acabou. (...) O mesmo acontece quando um de nós escorrega", diz Heleno

Quando a troca de farpas entre os presidentes da República, Jair Bolsonaro (PSL), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), ameaçou a reforma da Previdência antes mesmo de começar sua tramitação, o estado de alerta no núcleo de militares reformados que trabalha no Palácio do Planalto subiu de patamar. Não foi a primeira vez. A diferença agora é que os assessores que convivem diariamente com o presidente não têm mais dúvidas de que Bolsonaro tem causado danos a si e ao governo com seu hábito de atuar fazendo "guerrilhas". Para eles, a maneira "intempestiva" de agir, que teria origem em seu temperamento e em sua formação política, virou fonte de preocupação e de problemas cotidianos, o que põe em risco o projeto de desenvolvimento do país e a retomada do crescimento.
Os militares dizem ser essencial o presidente desistir da "prática que se mostrou exitosa na campanha eleitoral", considerando que o governo já completará cem dias na quarta-feira. O chefe da nação, ponderam, deveria promover a conciliação e a tolerância. Mas Bolsonaro mantém em pleno funcionamento sua fábrica de produzir polêmicas em série. Fontes do Planalto afirmam que o presidente não se abalou nem com o último levantamento do Ibope, divulgado no dia 20, registrando uma queda de 15 pontos em sua aprovação. Como ele demonstra desconfiança sobre a veracidade das pesquisas de opinião, segue a estratégia de agradar sua base de eleitores fiéis, que sustentam sua penetração popular.
Com a leitura de que o cenário é nebuloso, o grupo de assessores da Presidência teve muitas conversas com Bolsonaro nos últimos dias. Todos tentaram alertá-lo sobre o impacto de seu método mercurial. Dentro dos limites da hierarquia, em encontros individuais ou com vários presentes, recomendaram que o presidente mudasse seu estilo. Nessas reuniões, o presidente mostrou-se maleável e receptivo, mas voltou atrás. "Quando isso acontece, o estrago já foi feito", diz um desses assessores. Sua expectativa, entretanto, é que a última investida do núcleo militar surta efeito no gerenciamento do humor presidencial.
As ações em grupo dos militares reformados que estão na "cozinha do Planalto", definição usada para identificar os assessores mais próximos ao presidente da República, vêm sendo uma das mais fortes marcas desses cem dias de governo. Há pouco mais de uma semana, depois de dois meses de comentários do escritor Olavo de Carvalho contra esse núcleo no Twitter, o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz, respondeu. General de Divisão reformado, gaúcho, nascido em Rio Grande, de 67 anos, Santos Cruz comandou 12 mil homens no Haiti e outros 23 mil no Congo, em missões de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em entrevista ao jornal "Folha de S.Paulo", o ministro qualificou Carvalho de "desequilibrado". Espécie de guru de Bolsonaro, Olavo de Carvalho é um dos responsáveis, por exemplo, pelas nomeações de dois ministros: Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Vélez Rodríguez (Educação), ambos da ala "ideológica" do governo.
Os colegas do núcleo militar no Planalto dizem que Santos Cruz não "atirou em Carvalho para matar". Teria sido "um disparo de aviso", desses que os soldados dão aos inimigos para lembrar que o território está protegido e tem dono. Não teria agido em defesa própria, mas da corporação que ele representa e do grupo que reúne outros três graduados militares na "cozinha do Planalto", além do vice-presidente da República, o general de Exército na reserva Hamilton Mourão, a quem Carvalho chamara de "idiota". No começo desta semana, Carvalho deu a tréplica: "Ele [Santos Cruz] simplesmente não presta".

A estratégia dos militares da "cozinha do Planalto" não se explica nas ciências políticas. Admiradores das histórias da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) vão encontrar suas táticas de ação no livro "Band of Brothers", escrito por Stephen E. Ambrose (1936-2002) e adaptado para uma série de TV, com produção de Tom Hanks e Steven Spielberg.
Ambrose descreve a trajetória da companhia E (Easy Company) do 2º Batalhão do 506 Regimento de Infantaria Paraquedista, que participou da invasão dos aliados à Normandia no Dia D, em 1944, data que deu início à derrocada do nazismo. As tropas precisavam vencer a guerra, mas, acima de tudo, deviam proteção ao companheiro de trincheira que lutava ao lado. Os senhores grisalhos que despacham no Palácio do Planalto se tratam como uma irmandade. "Há 40 anos nos conhecemos e não fomos criados em ambientes de fofocas. Nossas divergências são tratadas numa discussão. Cada um diz o que pensa - e acabou. Não existem disputas ou briguinhas por picuinhas", diz Augusto Heleno Ribeiro Pereira, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
Todos eles entraram adolescentes na Escola Militar das Agulhas Negras, como cadetes. Saíram aspirantes a oficial, dando início a uma longa carreira até chegarem a generais. Os mais velhos foram instrutores dos mais novos. Há rivalidades e divergências, mas, se entrarem em guerra contra terceiros, vão se proteger e se defender. Foi o que fez Santos Cruz no episódio com Carvalho.
A defesa de Mourão feita pelo ministro não significa unanimidade a respeito da personalidade pró-ativa e loquaz do vice-presidente. Suas declarações corriqueiras muitas vezes também são fonte de problemas. Principalmente quando ele manifesta opiniões opostas às do presidente. "Aí, a gente chega e diz: 'Pô, Mourão, falou demais! Para com isso'. Ele reconhece, e acabou. É uma questão entre nós. O mesmo acontece quando um de nós escorrega", diz Heleno.
Diante dos atritos promovidos pelo presidente, Mourão, alinhado com o seu grupo militar no Planalto, tem dado outra dimensão ao cargo de vice-presidente. Na semana passada, por exemplo, atuou para mitigar os efeitos colaterais da fricção entre Bolsonaro e Maia, que se refletiu numa movimentação negativa nos mercados. Em um evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), na capital paulista, Mourão reafirmou os compromissos do governo com a retomada do crescimento e a estabilidade. Sua mensagem foi clara: o presidente e seus auxiliares farão de tudo para aprovar a reforma da Previdência e tentar tirar a palidez econômica do país. Naquele momento, ele não pretendia explicar o que acontecia no Palácio do Planalto.
Sua participação foi preparada em detalhes com o auxílio de outro general de Exército reformado, Gabriel Esper. Além de assessor de Paulo Skaf, presidente da Fiesp, Esper é amigo de Heleno, de quem foi colega de turma. Mourão fez uma palestra e à noite participou de um jantar com um grupo menor de empresários na casa de Skaf. "Temos que ver o governo como um filme, e não como uma fotografia. O ministro Paulo Guedes [Economia] e o presidente sabem que estão na direção certa e vão se manter nesse rumo", diz José Ricardo Roriz Coelho, presidente da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast).
Outros empresários também saíram do jantar com Mourão e de encontros com Bolsonaro e Guedes, em Brasília, mais tranquilos. Um deles, que prefere não se identificar, chegou a dizer que a crise, vista de São Paulo, parecia mais ameaçadora do que constatou na capital federal. "Fui achando que a coisa tinha desandado, mas não. Ainda estou confiante." Enquanto Mourão e Guedes atuaram junto ao público externo, o quarto general do grupo, o ministro da Secretaria Geral, Floriano Peixoto, tentava organizar a casa com a participação de Heleno e Santos Cruz. Ele substituiu Gustavo Bebianno, que foi demitido do cargo em fevereiro. Trata-se do oitavo militar na Esplanada. Ao todo, 36% dos ministros são das Forças Armadas.
Mais antigo na carreira e, embora rejeite a qualificação, mais influente assessor de Bolsonaro, Heleno é praticamente uma unanimidade entre seus pares. Aos 72 anos, casado, pai de dois filhos e avô de três netos, fez uma trajetória brilhante e chegou a general de Exército, segundo seus colegas, consagrado por sua visão estratégica e sua capacidade de comando.
Formou-se em primeiro lugar nas academias que frequentou, um mérito que, segundo ele, nunca teria sido alcançado não fosse sua mãe, dona Edina. Ela não admitia a hipótese de o filho único ser o segundo ou terceiro da turma. Na montagem inicial do governo, Heleno, que se dedica compulsivamente ao trabalho, seria o ministro da Defesa. Pouco antes da posse, Bolsonaro preferiu que ele ficasse no Palácio do Planalto e o nomeou chefe do GSI.

Na função que inclui a responsabilidade pela segurança do presidente, é difícil encontrar Heleno, no Brasil ou no exterior, longe do chefe. Na garagem do Palácio do Planalto, de segunda a sexta-feira, às 8h, como manda o protocolo, Heleno, o porta-voz da Presidência, Otávio Santana do Rêgo Barros, o chefe do cerimonial, Carlos Alberto Franco França e dois assessores do gabinete presidencial que acompanham Bolsonaro há tempos, também remanescentes de organizações militares, recebem o presidente.
A reunião das 9h, uma tradição que remonta ao tempo dos presidentes militares, agora começa às 8h, com um relato do noticiário e uma descrição da agenda do dia. Cabe ao general Rêgo Barros, de 59 anos, um dos mais jovens e ainda na ativa, descrever o que foi escrito e publicado nas últimas horas. Normalmente, o presidente não gosta do que ouve e lê na mídia. Prefere a "comunicação direta" das redes sociais e das "lives" que faz semanalmente. Assim como alguns dos mais próximos da Presidência, Bolsonaro considera que a mídia faz oposição ao seu governo e que os jornalistas, em maioria, são ideologicamente de esquerda.

A comunicação social continua sendo um dos pontos mais sensíveis da atual gestão. Antes de Rêgo Barros assumir o cargo, não havia um profissional para falar oficialmente em nome do governo. Ao mesmo tempo, não havia coordenação para a comunicação de assessores e ministros. A avaliação é que Rêgo Barros, um general com personalidade de "monge budista", atenuou um pouco essa tensão. Ele chegou com a benção do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, com quem trabalhara chefiando o Centro de Comunicação Social do Exército (CCComsex). Contou também com o aval de Heleno, a quem Villas Bôas passou a assessorar. Aos 67 anos, VB, como é conhecido, é visto como um dos mais influentes líderes da Força nas últimas décadas.
"Nos próximos dias vamos anunciar o plano de comunicação do governo", diz Santos Cruz. Desde antes da posse, ele e sua equipe se debruçam sobre os contratos de publicidade, tentam administrar a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e respondem pelo Programa de Parcerias e Investimentos (PPI). "Dizem que o governo tem poucas realizações para mostrar neste curto período. Como poucas?", pergunta. Cita como exemplos de trabalhos do Executivo os projetos da reforma da Previdência e da Segurança, este capitaneado por Sérgio Moro, ministro da Justiça e Segurança Pública. "Não são pouca coisa", afirma Santos Cruz.
Ao comparar duas de suas missões mais conhecidas, a de ministro e a de comandante de tropas no Congo, diz que cada lugar tem suas peculiaridades. Admite, porém, que em um confronto aberto há uma vantagem: "Quase sempre se sabe de onde vem os disparos. No governo, nem sempre". Às terças-feiras, os 22 integrantes do primeiro escalão se reúnem com Bolsonaro. Quase sempre um deles faz uma palestra sobre um tema específico. Depois das explanações, podem ser feitas perguntas inscritas previamente com o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM). Responsável pela máquina administrativa do governo e pela coordenação política, Onyx, que preferiu não conceder entrevista ao Valor, viu seu poder ser fatiado pelos militares.
Com uma coordenação política falha e com o projeto de agradar a seus eleitores, Bolsonaro passou a atacar os parlamentares, fazendo uma distinção entre "velha política" e "nova política". Em seu discurso, a "velha política" é apresentada como uma usina de mazelas. Já a "nova política" é um poço de virtudes. "Falta clareza institucional ao papel do presidente da República", diz Carlos Melo, cientista político e professor do Insper. Sua análise é similar à de assessores presidenciais ouvidos pelo Valor. "Bolsonaro ignora o papel de arbitragem, de ser o último a falar e de aglutinar." O resultado, diz Melo, é uma falta de clareza na sociedade e no Congresso Nacional sobre o que pensa e deseja o presidente. "Ele cria uma tensão improdutiva e desnecessária, perde o foco do que é importante. A política é a arte de agregar, não de dividir", afirma o cientista político.
O confronto entre grupos nitidamente definidos é permanente no governo. Há a turma dos "ideológicos", formada por Ernesto Araújo, Damares Alves (ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) e Vélez Rodríguez. A eles se juntam os filhos do presidente, em especial o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o vereador Carlos Bolsonaro (PSL-RJ). Eles têm uma trincheira própria e, com apoio de Olavo de Carvalho, enfrentam os militares e respondem por muitas das controvérsias do Planalto. "Eles são do grupo obscurantismo ostentação", diz o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), referindo-se à agenda conservadora que eles pregam.
O processo de desgaste de Vélez Rodríguez à frente do Ministério da Educação ganhou força após Bolsonaro admitir que as coisas "não estão dando certo" no MEC. Para dar um rumo à pasta, o presidente nomeou o tenente-brigadeiro Ricardo Machado Vieira como secretário-executivo da pasta. Fontes do Planalto dizem que, apesar de ser o segundo na hierarquia, ele deve ser o responsável pelo funcionamento da engrenagem, de fato. Com a indicação de Machado Vieira, Bolsonaro repetiu, em outros moldes, a fórmula que usa no governo. Também patrocinado por Carvalho e endossado pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, Ernesto Araújo, num primeiro momento, causou boa impressão em diferentes setores do governo. À medida que Araújo explicitava suas ideias, porém, passou a deixar o núcleo militar preocupado. Com o aval do presidente, a área também passou a ser supervisionada por eles.
Nesta semana, projetos da área da política externa ajudaram a engrossar o caldo do último embate entre o núcleo militar, olavistas e filhos do presidente. O Valor apurou que Bolsonaro já havia sido convencido de que, em sua visita a oficial a Israel, deveria abandonar a proposta de mudar a embaixada do Brasil, no país, de Tel Aviv para Jerusalém. A polêmica mudança é considerada improdutiva pela diplomacia brasileira. A visão de muitos no Itamaraty é a de que ela serviria para agradar ao eleitorado bolsonarista evangélico e para ajudar politicamente o premiê Binyamin Netanyahu, que disputa uma difícil reeleição marcada para terça-feira. Na véspera do desembarque de Bolsonaro, chegou-se a uma solução, anunciada no voo: a embaixada do Brasil ficaria onde está, mas o governo abriria um escritório de negócios em Jerusalém. Ninguém gostou. Netanyahu esperava a mudança, e a Autoridade Palestina condenou "nos termos mais fortes" a decisão brasileira. O desagrado, temem alguns militares e parte da equipe econômica, logo se refletirá nas exportações de carne que têm no mercado árabe o maior comprador.
Por Monica Gugliano,  Eu & Fim de Semana  -  Valor Econômico
 

domingo, 6 de janeiro de 2019

O menino da Rua do Cupim

“A ministra Damares cumpre um duplo papel no governo: provoca a oposição em relação à identidade de gênero e sai em defesa da segurança das crianças e suas famílias”

Damares Alves, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, já é uma estrela da nova equipe de governo de Jair Bolsonaro. Pastora evangélica, roubou a cena entre os seus pares ao afirmar, logo após a posse, para um grupo de apoiadores, que “menino veste azul e menina veste rosa”. Como quase tudo que acontece entre amigos, alguém gravou e vazou nas redes sociais a frase polêmica, que viralizou e levantou um debate sobre identidade de gênero muito maior do que aquele que ela própria pretendia.

A oposição e a imprensa atravessaram a rua para escorregar na casca de banana. Apontada pela mídia como patinha feia da equipe ministerial, Damares deu a volta por cima durante entrevista à GloboNews, na qual driblou os craques do jornalismo político da emissora com respostas que miravam os eleitores de Bolsonaro e não os seus interlocutores. Falou o que eles gostariam de ouvir. Não foi à toa, portanto, que o escritor, dramaturgo e jornalista Aguinaldo Silva disparou no Twitter: “Venderam a ministra Damares como uma espécie de “maluquete xiita” e ontem ela provou que na verdade é outra coisa: uma mulher conservadora, sim. Mas sensata, convencida do que diz, preparadíssima e disposta a fortalecer os vínculos na célula mater da sociedade, que é a família.”

O novelista sabe das coisas, é um premiado campeão de audiência no horário nobre da tevê brasileira e mais do que um observador arguto da revolução dos costumes sociais e políticos no Brasil, que já dura meio século. É um protagonista dessa revolução, ao lado de outros autores. Damares reagiu às críticas que recebeu com o argumento que repete à exaustão: “Fiz uma metáfora contra a ideologia de gênero, mas meninos e meninas podem vestir azul, rosa, colorido, enfim, da forma que se sentirem melhores.” Garantiu que não haverá retrocesso em termos de direitos adquiridos, em matéria de identidade de gênero. E partiu para a ofensiva num tema que explica muita coisa na eleição de Bolsonaro e que a oposição ainda não captou: a defesa das crianças e da família como instituição.

Ao contrário do que muitos imaginam, Damares não é só a pastora evangélica e assessora parlamentar que deu uma rasteira no chefe, o ex-senador Magno Malta, e virou ministra em seu lugar. É uma militante reconhecida do movimento em defesa das crianças que sofrem de depressão e outros distúrbios psicológicos, que têm impactado os altíssimos indicadores de suicídio e automutilação entre pré-adolescentes e adolescentes no Brasil. “Pobre, gay, mulato e abençoado”, Aguinaldo Silva, o menino da Rua do Cupim, no Recife, sacou que a ministra sabe o que está fazendo.


(...)

Identidade de gênero
Aguinaldo já escreveu mais de 100 mil páginas de livros, novelas, séries, minisséries, peças de teatro, crônicas, artigos e reportagens, sem contar os textos do seu blog, no qual faz uma espécie de striptease da sua vida intelectual: “Aos 75 anos, escrevo todos os santos dias, sem falhar carnaval, Natal, ano-novo ou qualquer feriado. Não preciso fazer como o general Coriolano, da tragédia de Shakespeare, e ir à praça pública mostrar minhas muitas cicatrizes. Minhas 14 novelas e meus 16 livros estão aí para isso”.

A chamada pauta identitária de gênero virou uma armadilha política. Serviu para que o PT saísse do isolamento após os escândalos de corrupção que protagonizou no poder e o impeachment de Dilma Rousseff. O movimento “#EleNão” foi uma ponte com as manifestações de gênero e deu sustentação à campanha de Fernando Haddad, principalmente depois da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entretanto, como no caso de Hillary Clinton, nas eleições norte-americanas, é uma agenda progressista, mas ideologicamente minoritária na sociedade. 

 Espertamente, foi associada por Bolsonaro à desagregação da família, uma tragédia para os mais pobres, principalmente numa conjuntura de desemprego em massa.  Damares cumpre um duplo papel no governo: de um lado, espicaça a oposição em relação a um tema no qual a opinião pública ainda é conservadora e, majoritariamente, está ao lado de Bolsonaro; de outro, se propõe a enfrentar um problema que as políticas públicas oficiais, segmentadas, não deram conta de resolver. A atenção dada a gestantes, idosos e crianças, por exemplo, é estanque e não cuida da segurança da família como um todo. Quando fala em virar esse jogo, Damares sabe que é música para os eleitores do capitão. A estratégia de penetração dos pastores evangélicos nas comunidades pobres do país é focada exatamente nisso. Hoje, é uma experiência exitosa de trabalho social, religioso e político, que comeu o mingau eleitoral pelas beiradas.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - CB