Recentemente, em duas oportunidades, surgiram no plenário da Câmara propostas de perdão das falcatruas do passado
Diz o ditado
popular que “quando a selva pega fogo, os bichos se unem”. Diante do
lamaçal que já veio à tona e do que ainda está por vir com a delação dos
executivos da Odebrecht, deputados e senadores estão em flagrante
ofensiva contra a Lava-Jato. A “pauta da imoralidade” consiste na
aprovação de leis que podem anistiar o caixa dois, abrir brechas nos
“acordos de leniência” para salvar empresários corruptos e enquadrar
juízes e procuradores pelo “abuso de autoridade”. O pacote das quatro
medidas pró-corrupção também inclui protelar a votação de projetos que
acabam com o foro privilegiado. O desmonte da Lava-Jato estará completo
caso o Supremo Tribunal Federal invalide as escutas telefônicas por mais
de 30 dias, mesmo quando autorizadas pela Justiça.
Quanto à
anistia ao caixa dois, a má-fé está no ar. É bom lembrar que o caixa
dois já é crime, há mais de 50 anos. O artigo 350 da Lei 4.737, de 1965,
que instituiu o Código Eleitoral, determina prisão de cinco anos e
multa para aqueles que omitirem ou prestarem informações falsas à
Justiça Eleitoral. [a redação do artigo 350 deixa espaço para eventual punição aos que praticarem caixa dois; eventual, tendo em conta que pune a omissão ou prestação de informações falsas à Justiça Eleitoral.
O que torna praticamente impossível é provar que ocorreu as citadas práticas.
A prestação de informações falsas pode até ser provada, haja vista que ao prestar informações o prestador tem que apresentar documentos e a falsidade documental é mais fácil de ser provada. Melhor dizendo, um pouco mais fácil, tendo em conta ser possível a apresentação de argumentos que suscitem dúvidas sobre a participação do declarante na falsidade.
Já provar a omissão é bem mais complicado e nessa alternativa é que se encontram as razões que impedem a punição do caixa dois.
A tipificação pretendida do crime de caixa dois apresenta a grande vantagem de tornar mais fácil provar a prática criminosa, mas, é mero jogo de cena falar em anistia aos praticantes do caixa dois - caixa dois NÃO É CRIME e só os crimes são suscetíveis de anistia.
Discutir a anistia de algo que não é crime tem um único objetivo: ganhar tempo e retardar o máximo possível a punição do caixa dois.]
Mais claro, impossível. A malandragem de um grupo de
parlamentares é tipificar, a partir de agora, o caixa dois como crime.
Como a lei não pode ter efeito retroativo, as irregularidades praticadas
antes da sua aprovação seriam automaticamente perdoadas. Sem falar nas
emendas de plenário que podem explicitar a anistia. Recentemente, em
duas oportunidades, surgiram no plenário da Câmara propostas de perdão
das falcatruas do passado. Por pouco, a mamata não foi aprovada, sem que
sequer se soubesse o nome do bandido-autor e de seus cúmplices. Na
próxima quinta-feira, será votado o relatório do deputado Onyx Lorenzoni
(DEM-RS), sobre o projeto de iniciativa popular que abrange as dez
medidas contra a corrupção e onde consta a criminalização do caixa dois.
O deputado não acredita que a nova legislação crie oportunidades para a
anistia geral. Eu não tenho a mesma convicção...
O projeto de lei
sobre os “acordos de leniência” também faz parte da pauta imoral. O
deputado André Moura (PSC-CE), líder do governo na Câmara, propõe a
extinção de penas e processos contra empreiteiras e empresários
envolvidos em casos de corrupção assim que os “acordos” sejam fechados
pelas empresas com o Poder Executivo. O Tribunal de Contas da União e o
Ministério Público Federal não participariam da celebração. O projeto
estava com “pedido de urgência” e seria votado às pressas, se não fosse a
reação enérgica na semana passada dos procuradores da Lava-Jato.
Em
outra frente, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do
Senado, desengavetou projeto de 2009 que propõe punições para o abuso de
autoridade que, de forma geral, ninguém discorda. O problema é que o
parlamentar coleciona oito inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF),
sendo investigado desde 2007 por ter tido despesas pessoais bancadas
pela construtora Mendes Junior, o que já não o credencia para defender
esta tese. O texto contém artigos que podem intimidar a ação de
policiais, procuradores e juízes ameaçando a Lava-Jato e outras
operações do gênero.
O chamado “foro privilegiado” — que assegura o
julgamento de autoridades pelo STF — também fomenta a impunidade. “O
STF não tem estrutura, vocação e até mesmo gosto por esse tipo de
processo”, disse o ministro Barroso. Atualmente, existem 357 inquéritos e
103 ações penais envolvendo foro no STF. Segundo pesquisa da “Folha de
S. Paulo”, um terço das ações penais sobre congressistas com foro na
Corte foi arquivado nos últimos dez anos por causa da prescrição dos
crimes. Em vista da indignação da sociedade com a suprema letargia,
nesta semana duas propostas limitando a abrangência do foro poderão ser
votadas em comissões das duas Casas Legislativas.
As investigações
da Lava-Jato e outras similares também poderão ser afetadas por
julgamento no STF, ainda sem data marcada, que irá discutir a legalidade
das escutas telefônicas por mais de 30 dias, mesmo quando autorizadas
pela Justiça. É óbvio que, para desbaratar casos complexos de corrupção,
escutas por 30 dias são insuficientes.
O procurador-geral da
República, Rodrigo Janot, disse que “a Lava-Jato envergou a vara da
corrupção endêmica no país”. De fato, a vara está envergada pelo peso
dos peixes graúdos que foram fisgados e estão lutando desesperadamente
para se livrar do anzol.
Enfim, a selva está em chamas, e as
labaredas irão aumentar. É preciso ter muito cuidado com bichos
assustados. Assim como os animais, os corruptos acuados são perigosos.
Por: Gil Castello Branco é economista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas gil@contasabertas.org.br
Transcrito de O Globo