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domingo, 30 de dezembro de 2018

Elio Gaspari: De Pio.Correa@edu para Bolsonaro@gov

Orgulho-me de estar à sua direita, mas como servi à diplomacia digo-lhe que o senhor, estando certo, faz errado

Excelentíssimo presidente,
Eu deixei a diplomacia em 1969, depois de 32 anos de serviços. O senhor era um garoto. Fui secretário-geral do Itamaraty e era chamado de "Abominável Homem das Nove". Orgulho-me ao dizer que estou à sua direita. Se o senhor duvida, repito-lhe o que disse a um colega assombrado com meu discurso ao assumir o cargo:-- Não gosto de diplomatas pederastas, não gosto de diplomatas vagabundos, não gosto de diplomatas bêbados.
Talvez vosmicê tenha simpatia pela memória do presidente John Kennedy.  Era um bestalhão e sua morte deixou-me indiferente. Vivi no Rio de Janeiro antes que Copacabana fosse invadida pela horda pululante e chinfrim de suburbanos transmigrados e pela lepra das favelas. Deixei um livro de memórias e se um diplomata fosse flagrado lendo-o durante a desgraçada ruína dos petistas, estaria frito. ("O Mundo em que Vivi", 1.098 páginas, pesando um quilo.) Minha lembrança foi banida da Casa a que servi, lutando contra o comunismo e os cabeludos esquerdosos.
Esse currículo é minha credencial para dizer-lhe que o senhor está fazendo o certo, da maneira errada. Nunca alimentei encrencas públicas com países com quem temos fronteiras secas. (Nossos limites com a Venezuela estendem-se por 2.200 km de mata.) Vá lá que seu governo queira brigar com Cuba, nosso saudoso marechal Castello Branco rompeu relações diplomáticas com o castrismo, mas não tinha créditos a receber. Os problemas da vida internacional não admitem improvisações fáceis (desconvidar convidados) nem atitudes emocionais (acicatar a China). Exigem definições fundadas no conhecimento perfeito dos fatos e em sua segura interpretação à luz do interesse nacional. E digo mais, exigem estilo.
Fui embaixador no Uruguai ao tempo em que lá vivia asilado o senhor João Goulart. Visitei sua filha quando ela foi atropelada e só me referia a ele em conversas com as autoridades locais como "el señor presidente". Vivi as delicadas negociações com a Argentina e o Paraguai que resolveram uma questão de limites e permitiram a construção da hidrelétrica de Itaipu. Jamais acompanhei a retórica antibrasileira dos nossos vizinhos. Podia-se detestar o Pio Correa, mas eu não podia estimular preconceitos contra nossa Pátria.

Mesmo quando deixei a carreira, tornando-me presidente da Siemens, empenhei minha palavra de honra em várias ocasiões e patrocinei uma visita de 50 jornalistas europeus ao Brasil, repelindo as denúncias de torturas sistemáticas a presos políticos. Ainda durante o governo do general Medici dei-me conta de que havia sido ludibriado. Mais tarde, muito esquerdistas proclamaram-se campeões da verdade. Ao meu estilo, em 1971, escrevi o seguinte ao chefe do Estado-Maior do Exército, general Alfredo Malan:
"Menti, sem saber, a quantos me ouviam. Estou hoje convencido, por boas e suficientes razões, de que a tortura, as torturas mais cruéis, são desgraçadamente aplicadas em nosso país de forma rotineira e sistemática a prisioneiros políticos. Iludido estava eu e iludido estará você, como iludido está o honrado e digno presidente da República que, como eu, afirmou publicamente o contrário."
Nunca divulguei essa carta porque, como na minha atividade diplomática, sempre segui o ensinamento do Barão do Rio Branco, tão violentado pela chusma esquerdista:
"Nada mais ridículo e inconveniente do que andar um diplomata a apregoar vitórias".
De seu fiel admirador,
Pio Correa

A 1ª LEI DE DELFIM
Nesta semana começa o governo de Jair Bolsonaro e não custa repetir a primeira lei do professor Delfim Netto: "Na quarta-feira o presidente terá que abrir a quitanda às 9h da manhã com berinjelas para vender a preço razoável e troco na caixa para atender a freguesia.

Pelos próximos quatro anos a rotina essencial será a mesma: abrir a quitanda, com berinjelas e troco.

Todos os desastres da economia brasileira deram-se quando deixou-se de prestar atenção na economia da loja."
 
(...)

INDULTO
Por trás do vaivém da concessão do indulto de fim de ano por Temer, esteve a decisão de deixar um legado para Bolsonaro.
Concedido, o indulto preservaria o delicado equilíbrio existente nos presídios do país. Negado, colocaria gasolina nos corredores controlados por facções criminosas que esperam faíscas capazes de estimular rebeliões.
Nas últimas semanas Bolsonaro e seu ministro Sergio Moro repetiram formulações genéricas que fazem sentido para quem está solto e são promessas de marcianos para quem está preso. Por exemplo: negar a progressão da pena para quem pertence a uma facção dentro de um presídio. Tudo bem, desde que se faça de conta que em alguns lugares é possível viver numa cela sem aderir à facção. Quem vai distinguir o preso primário que aderiu para proteger sua vida e a de sua família do bandido que chefia o grupo?
Elio Gaspari, jornalista - O Globo