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quarta-feira, 7 de outubro de 2020

O governo quer tesourar os supersalários - Teto salarial tem mais buracos do que queijo suíço - Elio Gaspari

 Folha de S. Paulo - O Globo

Os direitos do andar de cima são adquiridos, os do andar de baixo são flexíveis     

Ideia de limitar supersalários para dar auxílio é boa notícia

A boa notícia foi trazida pela repórter Geralda Doca: a ekipekonômika quer criar recursos para financiar o programa de amparo social impondo um teto salarial para os servidores públicos: R$ 39,2 mil mensais e nem um tostão acima disso. A medida resultaria numa economia de pelo menos R$ 10 bilhões anuais para a bolsa da Viúva. Se essa ideia for em frente, Jair Bolsonaro poderá custear uma parte de seu projeto. Hoje o programa Bolsa Família protege 13,5 milhões de famílias e custa R$ 29,5 bilhões anuais.

[o teto salarial já existe, só que a quase totalidade dos que arrombam o teto são exatamente os que fazem as leis, os que denunciam quando são violadas e os que julgam como são aplicadas - há raras exceções = uns poucos favorecidos que não estão entre os três grupos citados.

Por isso que nenhum projeto moralizando o teto salarial - tipo decretando que em nenhuma hipótese, a qualquer título, por qualquer motivo, com qualquer periodicidade, o Estado pode pagar a um CPF mais do que o teto (R$39,2 mil mensais) - vai em frente.

Outro ponto questionável é que direitos adquiridos não são alcançados por emenda constitucional: 
- a CF diz com clareza meridiana a lei não violará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada. Surge uma dúvida: 
se refere apenas à lei = lei ordinária, lei complementar. 
Ou inclui também à Consituição Federal.

Só que a Constituição é, no dizer de muitos, a LEI MAIOR, a CARTA MAGNA,  não sendo limitada por uma lei. Acontece que a tese deixa dúvidas o que leva o assunto para o STF - a quem cabe interpretar o texto constitucional.
É preciso continuar dissertando sobre o resultado ou já está claro?] 

O governo é obrigado a respeitar um teto de gastos. No entanto, há um teto salarial para os servidores e ele tem mais buracos do que queijo suíço

Entre setembro de 2017 e abril deste ano 8.226 magistrados receberam pelo menos um contracheque com valor superior a R$ 100 mil. 
Em 565 ocasiões, 507 afortunados faturaram mais de R$ 200 mil. Há universidades onde professores sacam salários de R$ 60 mil. 
Dois ministros de Bolsonaro conseguiram mais de R$ 50 mil mensais.

Ninguém faz coisa ilegal. O reforço têm nomes bonitos: auxílio-moradia, tempo de serviço, ou participação num conselho. A ideia do teto salarial está há tempo no Congresso, mas não anda. O andar de cima de Pindorama tem suas astúcias. O teto real seria ilegal, porque fere direitos adquiridos. É o jogo trapaceado. Os direitos do andar de cima são adquiridos, os do andar de baixo são flexíveis. Em 1851, Joaquim Breves, dono de grande escravaria e contrabandista de negros, dizia que a repressão ao tráfico ameaçava “a vida e fortuna de numerosos cidadãos, assim como a paz e a tranquilidade do Império”. Para felicidade geral da nação, a 13 de maio de 1888 atentou-se contra a propriedade privada e aboliu-se a escravidão.

O andar de cima é esperto. Em 1831 o Brasil assinou um tratado com a Inglaterra pelo qual todos os escravizados que chegassem a Pindorama seriam negros livres. Depois do tratado entraram perto de 800 mil negros escravizados e até 1850 só 8.000 foram resgatados. Desde 1818 a lei determinava que eles prestassem serviços à Coroa por 14 anos. Em 1835 criou-se um sistema de concessão, ancestral das Parcerias Público-Privadas. O magano ia à Coroa, pedia um negro e pagava uma anuidade equivalente ao que o escravizado lhe trazia trabalhando por um mês. Enquanto a PPP durou, foi um negócio da China. 

Os dois maiores políticos do Império, o marquês do Paraná e o duque de Caxias, conseguiram 21 e 22 cada um. Os dois principais jornalistas da época, Firmino Rodrigues Silva e Justiniano José da Rocha, também foram concessionários. A eles se juntaram barões, marqueses, juízes, médicos (inclusive o presidente da Academia Imperial) e parentes da governanta de d. Pedro 2º. Um desembargador ganhou 14 negros.

Se um fazendeiro do Vale do Paraíba comprasse um escravizado trazido por contrabandistas, comprava um risco. Se um “africano livre” da turma da PPP morresse, bastava pedir outro. Assim cevou-se a elite da Corte. Nela, poucos personagens de Machado de Assis trabalham.

Serviço: Todas as informações referentes aos escravizados estão no magnífico livro “Africanos Livres”, da professora Beatriz Gallotti Mamigonian, e em sua tese de doutorado “To Be a Liberated African in Brazil” (ser um africano liberto no Brasil), que está na rede.​

Folha de S. Paulo - O Globo - Elio Gaspari, colunista