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quinta-feira, 27 de junho de 2019

Judiciário não tem mais cerimônia na encampação das prerrogativas conferidas aos legisladores

A fogueira do ativismo judiciário

O Brasil não tem boa classificação nos rankings sobre segurança jurídica. Profusão de leis e normas administrativas redigidas em linguagem equívoca ou deliberadamente contraditória. Sobreposição de instâncias administrativas e judiciárias. Procedimentos de controle e fiscalização caros, que deveriam ser baratos; ou baratos, quando deveriam ser caros. Quebra constante e imotivada de contratos privados. Falta de efetividade das sanções, insignificantes ou draconianas, raramente ponderadas.

É preciso elevar os valores da previsibilidade e da confiança, duas variáveis necessárias para a fruição do progresso contemporâneo. Nos estudos nacionais e internacionais, o grave problema da insegurança jurídica, com custos econômicos e sociais expressivos, tem capítulo de destaque para a insegurança judiciária. O sistema de justiça dá relevante contribuição para o ambiente normativo turvo e labiríntico.

A estrutura de justiça – não apenas o Poder Judiciário – é cara, gigantesca e, o mais danoso, ferozmente intervencionista. Como muitas das instituições do País, diante da falta de controle cívico e social, as do sistema de justiça também têm a possibilidade de funcionar para si, por si e para os seus. Premido pelas influências históricas da cultura geral, o sistema de justiça contribui para o adiamento infinito rumo ao país do futuro, que poderíamos ser, com democracia, livre iniciativa e valor social do trabalho, tudo selado pela lei votada por Parlamento escolhido em eleição módica e disputada por partidos políticos orgânicos.

Mas, para além dos problemas gerais, comuns a todas as instituições, o sistema de justiça está enredado numa crise particular: a da usurpação da democracia representativa, da intervenção desabrida na prerrogativa do povo de fazer escolhas entre várias políticas públicas.   No desejo de contemplar todos, a Constituição de 1988 projetou a mais libertária e rica das nações. É uma espécie de retomada do País dos bacharéis. O governo de 64 conviveu com altas taxas de crescimento econômico. Mas a ordem jurídica tinha muito subproduto de atos institucionais, para o desprestígio dos bacharéis. Os economistas ganharam o protagonismo da liderança.

As crises do petróleo e a hiperinflação permitiram a virada. Depois de marcar os economistas com o epíteto de tecnocratas – não raro quando cobravam racionalidade e responsabilidade com o dinheiro público –, os bacharéis inscreveram na Constituição de 1988 as mais belas promessas.  Pouco depois, a queda do Muro de Berlim veio lembrar que os fatos da realidade cobrariam o seu preço. Só conseguimos alguma recuperação quando economistas notáveis puseram o Plano Real de pé e refundaram a ordem econômica. Isso sob o fogo cerrado de violenta guerrilha judiciária. O ministro da Fazenda Pedro Malan chegou a ser instado a pagar dezenas de bilhões de reais, só pelo fato de implementar o Plano Real. A URV, espinha dorsal do plano, foi julgada depois de 25 anos de sua criação.

Esses incidentes, independentemente do seu desfecho, demonstram que o sistema de justiça disfuncional tem a possibilidade de atacar, pesadamente, a autoridade de outro Poder de Estado, apenas pela execução de política pública afiançada pelo povo, no sistema democrático, e manter sob suspeição, por décadas, a iniciativa. Mas a obstrução judiciária de políticas públicas definidas pela democracia é só parte do problema. O sistema de justiça resolveu legislar abertamente. Não há mais nenhuma cerimônia na encampação das prerrogativas conferidas aos legisladores. Por intermédio das mais variadas modalidades de ações judiciais, certa “hermenêutica dos novos tempos” propõe e executa todo tipo de política pública. Faz “leis judiciárias” para todos os assuntos. Agora, à beira do precipício, vem o convite para o passo fatal: a criação de lei penal, por analogia, pelos juízes.
Centenas de milhares de brasileiros foram vítimas do genocídio das últimas décadas – negros e pardos, jovens e pobres, a maioria. Nem sequer a mais antiga das leis penais, a que sanciona o homicídio, foi aplicada com mínima eficiência. O Código Penal autoriza a pena máxima de 30 anos. Pouco importam o sexo, a raça, a cor da vítima. Portanto, não faltava, nem falta, lei punitiva com alto grau de severidade.
Todavia, estamos na iminência de cometer grave erro civilizatório, para regredir ao que Nelson Hungria chamou de a “mística hitleriana”. Depois de lembrar que o Código Penal comunista permitia ao juiz condenar por analogia “se uma ação qualquer, considerada socialmente perigosa, não se acha especialmente prevista no presente Código, os limites e fundamentos da responsabilidade se deduzem dos artigos deste Código que prevejam delitos de índole mais análoga” –, Hungria registrou que “esta pura e simples substituição do legislador pelo juiz criminal era incomparável com a essência do Estado totalitário, corporificado no Führer”.

Hitler desejava mais, segundo Nelson Hungria: “Preferiu-se uma outra fórmula, que está inscrita no ‘Memorial’ hitlerista sobre o ‘novo direito penal alemão’: permite-se a punição do fato que escapou à previsão do legislador, uma vez que essa punição seja reclamada pelo ‘sentimento’ ou pela ‘consciência’ do povo, depreendidos e filtrados, não pela interpretação pretoriana dos juízes, mas (e aqui é que o leão mostra a garra...) segundo a revelação do Führer”.

A lançar um dos mais simbólicos direitos fundamentais na fogueira da insegurança jurídica alimentada pelo ativismo judiciário, será preciso saber quem vai incorporar a mística hitleriana, para revelar a nós, os juízes, os crimes do novo direito penal da analogia. O vanguardismo messiânico, presente na Revolução Russa e no nazismo, tentou refundar o mundo sem passar pela ordem do direito burguês, liberal. Não deu certo. Nem dará. A barbárie nunca civilizou a barbárie.


Editorial -  O Estado de S. Paulo