O Estado de S.Paulo
Eles suportam um governo que embarcou numa perigosa aventura
Os militares que estão no governo aparentemente não comandam. Por motivo
simples: uma coisa é a aptidão técnica e a formação intelectual para
planejar e executar considerando meios e fins. Para isso os militares
foram muito bem preparados em suas academias, que equivalem a escolas de
business comparáveis às melhores lá de fora.
Outra coisa é o exercício da política, aprendizado que não está nos
currículos dessas academias. Tem sido mais fácil para os militares no
governo se apegar a seu padrão ético de “cumprir a missão”, “obedecer ao
comando hierárquico” e “não abandonar o barco em dificuldades” do que
enxergar que prestígio e respeito pacientemente recuperados pelas Forças
Armadas após o regime que instauraram e conduziram por 21 anos estão
naufragando pelo suporte que emprestam ao que hoje, sob Bolsonaro,
deriva numa aventura rumo ao abismo.
O que os levou a pular para a carruagem do atual presidente, que estava
longe de ser a primeira escolha deles, foi a noção de esgarçamento do
tecido social e de desagregação institucional ilustrada por dois
episódios significativos ainda no início da campanha eleitoral de 2018. O
primeiro foi o fica ou sai de Lula da cadeia em Curitiba, devido a uma
sequência de canetadas do Judiciário. Bagunça que por um triz não levou à
desordem. O segundo foi a bagunça mesmo criada pela greve dos
caminhoneiros.
[consertar o Brasil, desmontar o mecanismo é realmente uma missão perigosa, só que: "MISSÃO DADA,MISSÃO CUMPRIDA." Questionar uma missão, ainda que pela primeira vez, é algo que tem que ser cuidadosamente analisado, em todas as suas implicações, caso contrário estará se abrindo as portas para quebra da HIERARQUIA e DISCIPLINA.]
A um candidato sem planos, além de frases de efeito, os militares
levaram seriedade, confiabilidade e gente experiente em logística,
gestão de recursos, planejamento, disciplina e hierarquia. Acharam que a
onda disruptiva que destruiu a reputação de políticos, partidos,
imprensa e várias instituições se traduziria num “momento” político
capaz de fazer prosperar mesmo num Legislativo hostil a reformas, à
transformação do Estado e por aí vai. Não estavam sozinhos nessa mescla
de fé e esperança, combinadas a um pouco de cálculo.
Faltou o lado político, pelo qual Bolsonaro enveredou da pior forma
possível. Preferiu renunciar ao exercício de seu maior poder, que é
ditar a agenda. Preferiu concentrar-se no afago à suas parcelas de
seguidores incondicionais, que estão diminuindo. Jogou fora várias
oportunidades de se tornar uma voz pregando convergência, união,
pacificação, concentração de esforços. Perdeu tempo e, com a pavorosa
crise do coronavírus, perdeu também a moral.
Na mais recente grande crise do governo, a da saída de Sérgio Moro, os
militares encontraram como conveniente justificativa para tolerar um
governo no mínimo errático a postura do STF de limitar as prerrogativas
do Executivo. Além de legislar, o Judiciário em alguns casos até
governa, ou não deixa governar. Há um forte debate jurídico e acadêmico
sobre o tema, mas militares e políticos, e não só os do Centrão, avaliam
esse fato como usurpação de prerrogativas.
Portanto, sob essa ótica, é até “compreensível” o flerte nada discreto
do presidente com a crise institucional que os militares não querem que
aconteça. O problema político que eles não resolveram é traçar a linha
entre o que é “suporte institucional” a um governo destrambelhado e o
que é cumplicidade com o destrambelhamento. É o tipo de coisa, porém,
que só fica bem clara depois.
Parece evidente neste momento que está além da formação técnica e
doutrinária dos militares resolver um nó que é político na mais pura
essência. O símbolo de tudo isso é um general, que não é médico,
liberando [autorizando.] no Ministério da Saúde um documento contendo protocolo de
tratamento que médicos que o antecederam não quiseram assinar – e se
recusaram a fazê-lo por razões técnicas, e o general o fez por razões
políticas do presidente da República. São razões que passaram a ser, por conivência, conveniência ou inércia,
as razões também dos homens que vestiram ou vestem fardas.
William Waack, jornalista - O Estado de S. Paulo