A epidemia de coronavírus enfeitiçou as sociedades. Parte desse feitiço está nas palavras mágicas “pandemia” e “covid” — por isso elas foram deliberadamente evitadas na frase anterior. Não que tenhamos aqui o poder de desfazer esse feitiço. É só uma pequena desobediência aos ditames de um senso comum adoecido. A covid (citando pela última vez, por razões psicossemânticas) é real. E também é hipnótica. Aparentemente, pronunciando essa palavra você adquire poderes extraordinários sobre o seu semelhante.
A hipótese acima ainda não tem confirmação científica. Mas… Dane-se. Quem transformou a ciência em licença poética não fomos nós. Já vimos de tudo, até a Organização Mundial da Saúde empurrando pomposamente a humanidade para um gueto existencial chamado loquidau (se virar ciência a gente ajeita a grafia). Enfim, foram eles que começaram.
O tal feitiço está solidamente fundado num tabu. O fato de que o vírus se espalha rapidamente pelo mundo inteiro e realmente pode ser letal em milhares de casos foi transformado na seguinte armadilha:
ou você aceita todo o repertório de salvacionismos estúpidos e inócuos que se espalhou igualmente pelo mundo inteiro, ou você é uma criatura horrenda que despreza a vida dos outros.
Fotografar alguém andando de bicicleta para denunciar descumprimento de loquidau e falta de empatia é o diagnóstico inequívoco dessa outra doença que se espalhou junto com a c…
Essa epidemia de dedos-duros, patrulheiros, x-9 e como mais se queira chamar os empáticos de video game se tornou o combustível perfeito para a ascensão dos tiranetes.
Se uma grande parte da sociedade está disposta a linchar moralmente um vizinho ou um irmão que não se sujeite a qualquer boçalidade apresentada como segurança sanitária, o caminho está livre para o autoritarismo envergonhado sair do armário. E ele perdeu mesmo a vergonha.
Governadores e prefeitos que se apresentam como democratas limpinhos já fizeram as seguintes bondades dizendo que estão “salvando vidas”:
- toque de recolher ilegal supostamente contra aglomerações noturnas (mantendo aglomerações diurnas nos transportes);
bloqueio de gôndolas de supermercados fingindo que a restrição ao consumo de parte dos produtos diminuirá o contágio;
proibição de pessoas nas ruas mesmo durante o dia se o motivo da circulação for protesto contra essas falsas medidas sanitárias;
fechamento de comércio à força soldando portas de lojas;
proibição a lojista de expor na vitrine número de telefone para delivery; agressão física por parte de forças de segurança pública contra cidadãos (incluindo mulheres e adolescentes) que estavam circulando sem aglomeração (eventualmente sozinhas) por espaços abertos como orlas e praças;
invasão a residências para contar o número de pessoas presentes em reuniões particulares;
proibição ao trabalho de vendedores ambulantes ao ar livre sem restrição aos que se espremem no ambiente fechado dos ônibus; rodízios de automóveis que aumentaram aglomeração nos transportes públicos e até rodízio de pessoas por número de CPF.
Mas nenhum desses estagiários de Coreia do Norte é tratado como ditador. São todos “empáticos”.
Decide aí. Se você quer continuar sendo enxotado para dentro de casa que nem rato porque te dizem que assim você é um empático contra a c…, fique à vontade.
Você preferia não entregar sua liberdade de bandeja a tiranetes brandindo falsa ciência, mas e a c…?
Você não se importa com a c…??
É horrível ficar na berlinda dos negacionistas, fascistas e terraplanistas, né?
Então chega disso. Veste logo a sua ética de butique e sai rastejando aliviado, que ser rato não é tão ruim assim.
Não se esqueça de calar a boca para sempre sobre os estudos em torno do tratamento precoce — esse que médicos medalhões de São Paulo e Rio prescrevem discretamente aos seus pacientes, com todo o cuidado para não atrapalhar a ação dos senhores da verdade que perseguem, insultam, estigmatizam e banem como charlatões desgraçados os que fazem referência a essa terapêutica.
O que salva é o loquidau.
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Guilherme Fiuza, colunista - revista Oeste