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quarta-feira, 11 de setembro de 2019

A democracia como estorvo - Míriam Leitão

O Globo

As palavras querem dizer o que elas dizem 

[Carlos Bolsonaro é o feliz proprietário de um CPF exclusivo e o presidente da República, Jair Bolsonaro, de outro CPF.]

Os períodos autoritários sempre nasceram simulando a defesa de ideias que não poderiam ser implantadas na democracia. As instituições democráticas seriam estorvo nessa visão autoritária. No Brasil, dizia-se que 1964 fora também contra a corrupção e a inflação. Quem conseguiu vitórias nas duas frentes foi a democracia. Golpes às vezes são dados com o pretexto de acelerar mudanças econômicas. O presidente Bolsonaro, a sua família e alguns em seu entorno já louvaram tantas vezes as ditaduras que ignorar isso é insensatez. Esse é o contexto da mensagem do segundo filho. Ela precisa ser levada a sério e não ser desdenhada como mais uma do “carluxo”.

Carlos sempre foi o especialista em mídia digital e é quem fala para as alas radicais do bolsonarismo. A tentativa de se explicar depois adianta pouco. Ele não foi mal interpretado. Também não foi uma postagem errada, de impulso ou um deslize. Queria dizer mesmo que as mudanças que o governo prometeu não estão funcionando e há um motivo. “Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos... e se isso acontecer”. Defendeu que a roda está “girando em seu próprio eixo” e conclui que os que “nos dominaram” continuam dominando. O que ele quer dizer? O que ele disse. Está explícito. Não se pode acusá-lo de ambiguidade.

Como não foi dúbia a afirmação do deputado Eduardo Bolsonaro durante a campanha de que o STF poderia ser fechado bastando “um cabo e um soldado”. Esse desprezo por um dos poderes da República fica mais claro na fala completa dele durante a campanha presidencial. Alguém perguntou o que aconteceria se o STF impugnasse, por alguma irregularidade, a candidatura do pai, e ele respondeu:  — Se o STF pagar para ver vai ser ele contra nós. Será que eles vão ter essa força mesmo? O pessoal até brinca lá, cara: para fechar o Supremo não precisa nem de um jipe, basta um soldado e um cabo. E não é para desmerecer o soldado e o cabo. O que é o STF? Tira o poder da caneta de um ministro do STF.

Perguntado insistentemente sobre isso, Bolsonaro infantilizou o deputado: “Eu já adverti o garoto.” Eduardo foi direto no seu desprezo a uma das instituições da República democrática. Só ficou vaga a frase “o pessoal brinca lá, cara”. Quem é o “pessoal” e onde é “lá”? Desde que passou a ocupar funções públicas Bolsonaro tem defendido regimes de força, tem elogiado torturadores e os seus crimes. Não há fatos isolados neste caso.

Em todos os gestos, os filhos do presidente se colocam como fidalgos, o que também não é democrático. Quem seria admitido em um grande hospital portando arma? [estando o presidente da República em qualquer ponto da República Federativa do Brasil, as normas de segurança naquela área são de competência do GSI - Gabinete de Segurança Institucional e seguem critérios diversos dos utilizados no dia a dia do local - ainda que este seja um hospital.]  Eduardo repetiu ontem o gesto na Firjan. Se virar embaixador nos Estados Unidos ele conseguirá embarcar, desembarcar, fazer diplomacia com a pistola no cinto? [nas dependências da embaixada, por óbvio, vigoram as leis brasileiras.]

Que “transformação” está sendo difícil, talvez impossível, pelas vias democráticas? Isso Carlos não disse, mas o governo enfrenta duas frentes de descontentamento. A campanha inventou que o bolsonarismo era herdeiro da onda de combate à corrupção que já vinha ocorrendo pela via democrática. Prometeu também crescimento econômico. Nove meses depois, há evidentes ataques à operação de combate à corrupção, e a economia desacelerou da fraca retomada que chegou a esboçar em meados do ano passado. E isso está decepcionando quem acreditou nas promessas de campanha. Aí veio a tentativa de achar um culpado. No caso, seria a democracia. [a democracia brasileira tem peculiaridades, especialmente quanto há interesses do Executivo em jogo;
além do crivo que o Congresso Nacional, constitucionalmente, está autorizado a efetuar, o Judiciário costuma se sentir no direito de interferir e atrapalhar um pouco mais o atendimento as necessidades do Poder Executivo na busca da satisfação de atender os anseios da população;
outras vezes o Congresso aprova e o Poder Judiciário decide intervir, bloqueando/retardando, e o Poder Legislativo queda inerte.
Sem esquecer que algumas vezes o Poder Executivo atrapalha seus próprios projetos com erros simples.]

Até agora, o que houve foi o desmonte do combate à corrupção patrocinado direta ou indiretamente pelo grupo no poder. Para proteger o primeiro filho, Flávio, das dúvidas razoáveis a respeito do que acontecia em seu gabinete, vale tudo: trocar o comando da Polícia Federal no Rio, e talvez até em Brasília, desmontar o Coaf, e conseguir uma medida liminar que parou inúmeras investigações e nomear um PGR que se apresentou como submisso ao governo. Na economia, o ambiente continua árido, sem qualquer sinal de melhora a curto prazo. É nesse ambiente de frustração que falou o filho do presidente, considerado o especialista em comunicação da família. [todas as medidas  classificadas como vale tudo, foram adotadas pelo Presidente da República, no exercício dos poderes que a CF 88 lhe atribui.
Importante, destacar, apesar da obviedade, que o Coaf teve apenas mudado o seu nome e sua subordinação e a liminar foi concedida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal.]
As palavras querem dizer o que elas dizem. Não adianta tentar consertá-las depois. Tratar como naturais declarações antidemocráticas só porque elas são recorrentes é deixar-se entorpecer pelo absurdo. É exatamente a repetição que as torna mais graves.

Blog da Míriam Leitão, jornalista, com Alvaro Gribel, São Paulo - O Globo

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Coerção ou convencimento?

A pressão através das redes sociais, que pode favorecer o governo em algumas ocasiões, pode também se virar contra ele

 O “presidencialismo de coerção”, como está sendo chamada em Brasília a suposta maneira Bolsonaro de governar, pressupõe uma ação deliberada do governo de pressão sobre os diversos grupos políticos e sociais que se colocarem em oposição às propostas que pretenda aprovar no Congresso.  O presidente eleito mitigou a ameaça, dizendo que a intenção é convencer o Congresso, não impor decisões.  Tem a ver com frases polêmicas do superministro da Economia, Paulo Guedes, que pretendia “dar uma prensa” no Congresso, e o deputado-filho do presidente eleito, que disse que a oposição seria “tratorada”.

A questão é se o e-gov (governo eletrônico) que se está preparando, como anunciou ontem o futuro ministro do Gabinete Civil, Onyx Lorenzoni, vai ter também a função de estimular militantes a pressionar os “ativistas” (que Bolsonaro já disse que quer inviabilizar), ou os congressistas.  Além de baratear custos e desburocratizar, o governo eletrônico tem o objetivo de aproximar governantes e governados através dos novos meios de comunicação. Se essa aproximação, porém, servir para mobilizar a opinião pública de maneira direta contra políticos, ativistas e jornalistas, como estamos vendo acontecer nos Estados Unidos de Trump, podemos ter problemas institucionais graves.

O general Hamilton Mourão, futuro vice-presidente, revelou a estratégia em entrevista, falando genericamente sobre as vantagens das novas mídias: “Aquele processo antigo de comunicação, via filmetes, propagandas tradicionais, será abandonado. (…) A mídia digital é o método fundamental para conseguirmos nos comunicar, muito mais do que essas outras propagandas que gastam rios de dinheiro.”Deu certo na campanha presidencial, por que não dará no dia a dia do governo? Carlos, filho vereador de Bolsonaro, chamado de 02, é o cérebro por trás da estratégia digital do pai, e deve coordenar os instrumentos do “presidencialismo de coerção”, se for colocado realmente em prática.

Mas esse esquema pode se voltar contra o próprio governo. Atribuída a Tancredo Neves, a frase “não nomeie quem não pode demitir” tem sido muito falada em Brasília nesses dias em que dois superministros estão sendo apresentados ao grande público, um, Paulo Guedes, já em plena atividade. Outro, Sergio Moro, às voltas com questões legais, afastou-se dos processos de Curitiba e saiu de férias para poder trabalhar sem ferir a legislação.
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, não parece preocupado com a impressão de que não pode demitir um dos dois quando considerar necessário, e vai dando carta branca para o economista Paulo Guedes nomear seus auxiliares.

Na segunda-feira foi anunciado para presidir o BNDES o ex-ministro da Fazenda de Dilma,  Joaquim Levy, que superou intrigas de bastidores que queriam barrá-lo justamente por ter trabalhado com o PT e com o ex-governador do Rio, hoje preso, Sérgio Cabral.
O presidente eleito entendeu que ele saiu dos dois governos justamente por não poder fazer seu trabalho direito. Bolsonaro sabe que quem delega é quem tem o poder de retirar a delegação, e a prova concreta disso é o ex-presidente Lula, que perdeu dois dos seus principais auxiliares, o ex-ministro do Gabinete Civil José Dirceu, e Antonio Palocci, da Fazenda, e seguiu em frente. Mas é inegável que perder os sustentáculos de um governo é tarefa complicada de lidar.

Especialmente se um é a garantia da política liberal que está animando os mercados e os investidores, e o outro é a garantia da seriedade do compromisso presidencial no combate à corrupção. A demissão de qualquer um terá uma repercussão negativa para o governo, a não ser que aconteça alguma coisa fora do normal — como no caso dos dois superministros de Lula —  que a justifique perante a opinião pública.  A pressão da opinião pública através das redes sociais, que pode favorecer o governo em algumas ocasiões, pode também se virar contra ele no caso de uma demissão injustificada, ou que signifique uma mudança de rumo nas políticas anunciadas.