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segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A ideologia bolsonarista - Denis Lerrer Rosenfield

O Estado de S. Paulo

É uma concepção de extrema direita, que não se confunde com direita conservadora e liberal

A ideologia bolsonarista configura um caso de concepção de extrema direita, que não se deixa confundir com posições de direita conservadora e liberal. Ela se constitui enquanto conjunto de ideias que estrutura a sua ação, visando à instituição de sua própria forma de poder. Criticá-la por “insensata”, “maluca”, “macabra” ou “contraditória” realça isoladamente determinados aspectos seus sem, no entanto, abarcar a sua totalidade. São posições que, por assim dizer, se situam em outra perspectiva, a de uma normalidade que é posta em questão. Vejamos alguns de seus eixos estruturantes.

A figura do líder – Bolsonaro se produz como um líder de massas, que com elas procura estabelecer uma interação direta, sem o uso de mediações, como a Câmara dos Deputados e o Senado. Ou seja, a representação política é objeto de escárnio, salvo nos casos em que se torna necessária, como hoje ocorre com o restabelecimento das relações com alguns partidos políticos, por temor de impeachment ou de perda de poder. Seu objetivo consiste em colocar-se acima das instituições e da sociedade, como se só ele soubesse o que é melhor para elas. Não hesita em se colocar como grande médico e cientista, prescrevendo medicamentos ineficazes, como a cloroquina. Sozinho sabe o que é melhor para a saúde dos brasileiros, menosprezando a ciência por princípio. Em outra versão, é o “super-homem” contra os “maricas”. Eis por que é tratado por mito, por maior que seja a bobagem que diga. O mito é o lugar do seu saber.

O medo – Insufla ele o medo da pandemia e do desemprego, ao mesmo tempo que se apresenta como a solução da pandemia e do desemprego. Não é ele responsável por nada, tudo atribui aos outros como causadores desta situação, sejam os chineses, os comunistas ou os políticos a ele não alinhados. Ele precisa do medo para governar e se põe na posição de “salvador”. [Bolsonaro não precisa do medo para governar e sim que parem de sabotar seus esforços para governar o Brasil;
Respeitem a vontade de quase 60.000.000 de eleitores e tenham em conta que a democracia que tanto dizem defender (claro em uma versão interpretada de forma criativa) determina que a vontade da maioria tem que ser respeitada - ainda que para tanto tenham que desconsiderar os desejos intenções de alguns líderes políticos que ocupam cargo de importância, mas que nas eleições 2018 um deles obteve pouco mais de 70.000 sufrágios e o outro menos de 150.000 - felizmente, estão sendo alijados dos cargos que ainda ocupam por mais alguns dias.]  Isso pode soar paradoxal, porém só o é na perspectiva da política clássica, e não da de extrema direita, que expressa a sua concepção. Mais especificamente, o seu modo de tratamento da pandemia corresponde a essa orientação, jogando com o medo da doença e da morte, declarando procurar minimizá-las. O Brasil chega às 210 mil mortes, no entanto, é como se fosse “da vida” a morte causada por descaso, incúria e, em certo sentido, intencionalmente, visto que vem a fazer parte desse jogo macabro da política. [sendo recorrente no repto, até o momento,  não contradito: 
- inúmeras acusações de responsabilidade do presidente Bolsonaro pelas mortes decorrentes da covid-19, muitas atribuídas à pandemia, são mencionadas (sem detalhes, sem  evidências.) Só que até o momento, nenhuma acusação, sustentável, de que uma só morte seja decorrente de alguma ação ou omissão do presidente da República.
O mesmo não se pode dizer de alguns governadores e prefeitos que usando de um protagonismo que receberam, se sentiram à vontade para fazer besteiras. Exemplos: um mandava abrir e o vizinho mandava fechar; um mandou fechar e viajou para Miami; outro investiu na criação de engarrafamentos artificiais e compra de urnas funerárias.
Vamos facilitar: qual a real, concreta e fundamentada responsabilidade do presidente Bolsonaro para a lamentável e terrível falta de oxigênio em Manaus?  
Seus inimigos, também inimigos do Brasil, chegaram ao ápice de chamá-lo de presidente 'asfixiador' - um dos primeiros a aplicar imerecidamente tal adjetivo foi um ex-governador do DF, também ex-ministro que conseguiu a proeza de ser demitido, por telefone,  pelo ex-presidente petista.]

Ausência do princípio da não contradição – O princípio da não contradição, formulado por Aristóteles, que veio a fazer parte do exercício da razão e da política, não opera numa concepção de extrema direita. O líder diz uma coisa num dia e o seu contraditório no dia seguinte, e assim indefinidamente. Seu traço característico é que sempre tem razão, por mais irracional que seja a sua posição. Um dia declara o presidente que jamais comprará uma vacina chinesa, em outro a compra; um dia a covid-19 é uma mera “gripezinha”, em outro, uma doença mortal; um dia, ao arrepio de qualquer verdade, considera que apenas seus medicamentos mágicos são eficazes e em outro, que o Brasil é o país que tem o melhor desempenho mundial no combate a essa pandemia. Um dia é contra a corrupção na política, em outro protege os seus que estão nela envolvidos.

Distinção amigo e inimigo – A política de extrema direita está baseada na distinção amigo/inimigo, formulada pelo teórico nazista Carl Schmitt. Todo aquele que não se alinha ao líder em suas mutáveis posições, uma vez que ele detém a razão e a verdade, é tido por inimigo. Não há possibilidade de diálogo e conciliação, salvo sob a forma enganosa produzida por alguma oportunidade do momento. Ela está centrada na destruição do outro, na não aceitação da crítica e na tentativa de impor diretamente uma relação hierárquica de comando: sou “eu” quem manda! Quem não estiver comigo deve ser abatido, o que vale para “amigos” que, por discordância, deixaram de sê-lo. Veja-se o caso de agora “ex-amigos” do presidente que ousaram discordar de suas opiniões. Observe-se que tal tipo de política cria a desordem institucional, sanitária, econômica e social, embora a sua justificativa seja a de que o “salvador” é o fiador da ordem.

Milícias digitais – As milícias do líder apresentam-se sob a forma contemporânea de milícias digitais. De um lado, não há nada de novo, uma vez que tanto o nazismo quanto o fascismo fizeram uso intensivo dos meios de comunicação vigentes na época, muito particularmente do rádio; de outro lado, as novas redes digitais são muito mais abrangentes, alcançando diretamente as pessoas, prescindem dos meios de comunicação tradicionais e também dos seus meios de controle. Mentiras e o que se denomina fake news têm livre trânsito, como se um mundo paralelo por meio delas se criasse, pretendendo alguns ser o verdadeiro. Mais particularmente, os meios digitais, por seu modo de transmissão e mensagem, são particularmente adequados para a distinção amigo/inimigo, tratando o “discordante”, o “opositor”, com desprezo e escárnio, como inimigo a ser abatido.

Denis Lerrer Rosenfield, Professor de filosofia UFRGS -  e-mail: denisrosenfield@terra.com.br - O Estado de S. Paulo