Bruno Carazza
Rotina de presos da Lava Jato reproduzia privilégios
A vida dos detentos da Lava-Jato melhorou muito quando puderam utilizar
na cadeia um produto denominado “bloqueador de odores sanitários”. Com o
problema do mau-cheiro resolvido, o cotidiano na sexta galeria oferecia
um serviço cinco estrelas comparado com as demais prisões no Brasil:
rádio e TV liberados, um pátio maior para fazer exercícios físicos e
livre trânsito entre as celas dos colegas.
A cena é descrita por Wálter Nunes em “A Elite na Cadeia: o dia a dia
dos presos da Lava Jato”, lançado recentemente pela editora Objetiva.
Repórter da “Folha de S.Paulo”, Nunes cobriu in loco o entra-e-sai de
políticos e executivos de algumas das mais importantes companhias do
país na carceragem da Polícia Federal em Curitiba e no Complexo Médico
Penal de Pinhais.Nos plantões em que acompanhava os efeitos de decisões judiciais e
acordos de delação premiada no âmbito das várias fases da operação, o
jornalista obteve a confiança de agentes penitenciários, carcereiros e
diretores das prisões, além de advogados e parentes dos detentos, que
lhe contaram o comportamento e a rotina dos presos mais famosos do
Brasil - relatos esses que são a matéria-prima do livro.
A presença de políticos, empreiteiros, lobistas, doleiros e dirigentes
de estatais no sistema prisional é um feito incomum dado nosso longo
histórico de leniência não apenas com a corrupção, mas com os chamados
crimes de colarinho branco em geral. Não é à toa que menos de 1% da
população carcerária brasileira tem curso superior. As prisões brasileiras são uma amostra, em cores ainda mais sombrias, da
imensa desigualdade social brasileira, e o livro-reportagem de Wálter
Nunes mostra como esse sistema gera privilégios para os mais ricos e
poderosos até mesmo na cadeia.
É difícil disfarçar nosso sadismo quando imaginamos os responsáveis por
desvios bilionários dos cofres públicos comendo arroz, macarrão e feijão
na marmita fria, ou ao pensarmos em seus familiares sendo submetidos à
mesma revista íntima degradante a que milhares de parentes dos presos
“comuns” são obrigados a enfrentar nos dias de visitas. Não é fácil
exercer a empatia mesmo diante dos relatos de crises de choro e
depressão quando nos lembramos que aqueles mesmos indivíduos distribuíam
ou recebiam malas de dinheiro e transferiam milhões de reais desviados
para paraísos fiscais.
O fato de figurões da República estarem sob a responsabilidade da
Polícia Federal e do sistema penitenciário paranaense, porém, lhes
conferiu uma série de benesses que são negadas aos detentos normais. Por
medo de se tornarem alvo de facções criminosas ou rebeliões, os presos
da Lava-Jato ficavam em geral apartados em galerias exclusivas, o que
por si só lhes protegia das condições medievais em que são confinados os
demais criminosos no país. É óbvio que não estou aqui a defender
tratamentos desumanos para quem descumpre a lei; pelo contrário, um
sistema prisional indigno só degenera ainda mais os condenados no seu
retorno à sociedade.
Mas, a partir do descrito em “A Elite na Cadeia”, a deferência com que
foram tratados corruptores e corruptos - e o que é pior, os privilégios
que foram adquirindo com o passar do tempo - revoltam o cidadão comum. De acordo com o relato de Wálter Nunes, progressivamente os detentos da
Lava-Jato foram conquistando pequenas regalias em geral negadas aos
presos comuns. Um exército de advogados muito bem pagos tratou de obter
junto ao então juiz Sergio Moro condições que, apesar de estarem
previstas na Lei de Execuções Penais, dificilmente são concedidas a quem
não dispõe dessa assessoria, como atendimento médico, dieta especial e
até podóloga. Conforme conquistavam a confiança e a intimidade de
agentes penitenciários e diretores da prisão, os lava-jatos passaram a
ter acesso a objetos normalmente negados, de jornais e revistas a barras
de chocolate, passando por aparelhos de ginástica e luminárias.
É curioso notar como, dentro da prisão, alguns lava-jatos desempenhavam
os mesmos papéis exercidos em liberdade. Fernando Baiano e Adir Assad,
por exemplo, se encarregavam de levar aos responsáveis pela sua custódia
os pleitos dos demais presos, tentando convencê-los da necessidade do
seu atendimento, tal qual faziam na sua atividade de lobistas. Em
algumas situações os empreiteiros levaram a cabo verdadeiras parcerias
público-privadas com a direção da prisão, custeando o conserto das
caldeiras do aquecimento de água ou a reforma do sistema de captação do
sinal de TV aberta.
O livro de Wálter Nunes ainda traz a suspeita, transmitida ao autor por
várias de suas fontes, de que regalias também foram prometidas e
concedidas como estímulo à celebração de acordos de delação premiada. A
convivência entre delatores e delatados, como Alberto Youssef e Nelma
Kodama, também teria sido determinante para aumentar o número de
interessados em negociar com o Ministério Público e a Polícia Federal. Ao final da leitura de “A Elite na Cadeia” fica-se com a sensação de
que, para os poderosos pegos pela Lava-Jato, o crime compensou. Na ânsia
de aprofundar as investigações, o recurso de conceder benefícios em
troca de informações delatadas parece ter ido longe demais. Hoje, a
maior parte dos personagens do livro de Wálter Nunes já se encontra em
casa, beneficiados pela colaboração premiada ou pela decisão do Supremo
contra a prisão em segunda instância. Pelo montante de recursos
desviados e a degeneração da República, corruptos e corruptores ficaram
muito pouco tempo na cadeia - e mesmo durante esse período, a rotina dos
lava-jatos descrita no livro mais parece um misto de spa, retiro
espiritual e colônia de férias.
Graças à Lava-Jato, Sergio Moro chegou a ministro da Justiça e hoje é o
responsável pelas investigações da Polícia Federal e pela execução das
penas no sistema prisional. Seria bom se, perante a bancada do “Roda
Viva” de hoje, ele expusesse um plano concreto para fazer do cumprimento
da pena um real incentivo para evitar que criminosos voltem a delinquir
e outros não sigam seu caminho.
Bruno Carazza, mestre em economia,
doutor em direito, professor do Ibmec e servidor publico federal (licenciado) - Valor Econômico