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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Férias numa colônia penal - Valor Econômico

Bruno Carazza

Rotina de presos da Lava Jato reproduzia privilégios

A vida dos detentos da Lava-Jato melhorou muito quando puderam utilizar na cadeia um produto denominado “bloqueador de odores sanitários”. Com o problema do mau-cheiro resolvido, o cotidiano na sexta galeria oferecia um serviço cinco estrelas comparado com as demais prisões no Brasil: rádio e TV liberados, um pátio maior para fazer exercícios físicos e livre trânsito entre as celas dos colegas.

A cena é descrita por Wálter Nunes em “A Elite na Cadeia: o dia a dia dos presos da Lava Jato”, lançado recentemente pela editora Objetiva. Repórter da “Folha de S.Paulo”, Nunes cobriu in loco o entra-e-sai de políticos e executivos de algumas das mais importantes companhias do país na carceragem da Polícia Federal em Curitiba e no Complexo Médico Penal de Pinhais.Nos plantões em que acompanhava os efeitos de decisões judiciais e acordos de delação premiada no âmbito das várias fases da operação, o jornalista obteve a confiança de agentes penitenciários, carcereiros e diretores das prisões, além de advogados e parentes dos detentos, que lhe contaram o comportamento e a rotina dos presos mais famosos do Brasil - relatos esses que são a matéria-prima do livro.

A presença de políticos, empreiteiros, lobistas, doleiros e dirigentes de estatais no sistema prisional é um feito incomum dado nosso longo histórico de leniência não apenas com a corrupção, mas com os chamados crimes de colarinho branco em geral. Não é à toa que menos de 1% da população carcerária brasileira tem curso superior. As prisões brasileiras são uma amostra, em cores ainda mais sombrias, da imensa desigualdade social brasileira, e o livro-reportagem de Wálter Nunes mostra como esse sistema gera privilégios para os mais ricos e poderosos até mesmo na cadeia.

É difícil disfarçar nosso sadismo quando imaginamos os responsáveis por desvios bilionários dos cofres públicos comendo arroz, macarrão e feijão na marmita fria, ou ao pensarmos em seus familiares sendo submetidos à mesma revista íntima degradante a que milhares de parentes dos presos “comuns” são obrigados a enfrentar nos dias de visitas. Não é fácil exercer a empatia mesmo diante dos relatos de crises de choro e depressão quando nos lembramos que aqueles mesmos indivíduos distribuíam ou recebiam malas de dinheiro e transferiam milhões de reais desviados para paraísos fiscais.

O fato de figurões da República estarem sob a responsabilidade da Polícia Federal e do sistema penitenciário paranaense, porém, lhes conferiu uma série de benesses que são negadas aos detentos normais. Por medo de se tornarem alvo de facções criminosas ou rebeliões, os presos da Lava-Jato ficavam em geral apartados em galerias exclusivas, o que por si só lhes protegia das condições medievais em que são confinados os demais criminosos no país. É óbvio que não estou aqui a defender tratamentos desumanos para quem descumpre a lei; pelo contrário, um sistema prisional indigno só degenera ainda mais os condenados no seu retorno à sociedade.

Mas, a partir do descrito em “A Elite na Cadeia”, a deferência com que foram tratados corruptores e corruptos - e o que é pior, os privilégios que foram adquirindo com o passar do tempo - revoltam o cidadão comum. De acordo com o relato de Wálter Nunes, progressivamente os detentos da Lava-Jato foram conquistando pequenas regalias em geral negadas aos presos comuns. Um exército de advogados muito bem pagos tratou de obter junto ao então juiz Sergio Moro condições que, apesar de estarem previstas na Lei de Execuções Penais, dificilmente são concedidas a quem não dispõe dessa assessoria, como atendimento médico, dieta especial e até podóloga. Conforme conquistavam a confiança e a intimidade de agentes penitenciários e diretores da prisão, os lava-jatos passaram a ter acesso a objetos normalmente negados, de jornais e revistas a barras de chocolate, passando por aparelhos de ginástica e luminárias.

É curioso notar como, dentro da prisão, alguns lava-jatos desempenhavam os mesmos papéis exercidos em liberdade. Fernando Baiano e Adir Assad, por exemplo, se encarregavam de levar aos responsáveis pela sua custódia os pleitos dos demais presos, tentando convencê-los da necessidade do seu atendimento, tal qual faziam na sua atividade de lobistas. Em algumas situações os empreiteiros levaram a cabo verdadeiras parcerias público-privadas com a direção da prisão, custeando o conserto das caldeiras do aquecimento de água ou a reforma do sistema de captação do sinal de TV aberta.

O livro de Wálter Nunes ainda traz a suspeita, transmitida ao autor por várias de suas fontes, de que regalias também foram prometidas e concedidas como estímulo à celebração de acordos de delação premiada. A convivência entre delatores e delatados, como Alberto Youssef e Nelma Kodama, também teria sido determinante para aumentar o número de interessados em negociar com o Ministério Público e a Polícia Federal. Ao final da leitura de “A Elite na Cadeiafica-se com a sensação de que, para os poderosos pegos pela Lava-Jato, o crime compensou. Na ânsia de aprofundar as investigações, o recurso de conceder benefícios em troca de informações delatadas parece ter ido longe demais. Hoje, a maior parte dos personagens do livro de Wálter Nunes já se encontra em casa, beneficiados pela colaboração premiada ou pela decisão do Supremo contra a prisão em segunda instância. Pelo montante de recursos desviados e a degeneração da República, corruptos e corruptores ficaram muito pouco tempo na cadeia - e mesmo durante esse período, a rotina dos lava-jatos descrita no livro mais parece um misto de spa, retiro espiritual e colônia de férias.

Graças à Lava-Jato, Sergio Moro chegou a ministro da Justiça e hoje é o responsável pelas investigações da Polícia Federal e pela execução das penas no sistema prisional. Seria bom se, perante a bancada do “Roda Viva” de hoje, ele expusesse um plano concreto para fazer do cumprimento da pena um real incentivo para evitar que criminosos voltem a delinquir e outros não sigam seu caminho.

Bruno Carazza, mestre em economia, doutor em direito, professor do Ibmec  e servidor publico federal (licenciado) - Valor Econômico