O
Grupo de Trabalho Antissuborno da Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), a qual é conhecida também como “clube
dos países ricos”, divulgou ontem (19) um relatório que envergonha o Brasil perante a comunidade internacional
e pode dificultar o ingresso do Brasil nesse clube, o que poderia
trazer grandes benefícios ao país e era uma das prioridades do último
governo. Destacarei três pontos do extenso relatório de 117 páginas que
pode ser lido na íntegra aqui.
Primeiro,
a OCDE concluiu que o Brasil falhou no combate à corrupção ao fomentar
um clima de impunidade, em que não há punição efetiva nos grandes casos
de suborno internacional e de corrupção revelados e comprovados pela
Lava Jato, além de outras grandes operações. Todos já sabiam disso por
aqui, mas agora a força e a resiliência da corrupção brasileira são
expostas para o mundo. É constrangedor.
A OCDE
repetiu uma das nossas maiores críticas ao STF, ao afirmar que a decisão
do Supremo de 2019 que proibiu a prisão em segunda instância é um dos
principais motivos da impunidade brasileira. Para a OCDE, a prisão
apenas após o trânsito em julgado, “combinado com as regras de
prescrição no Brasil, cria um risco de gerar impunidade na prática para a
corrupção internacional”.
O exemplo trazido pela
OCDE foi o famoso caso dos executivos da Embraer, condenados pelo
pagamento de mais de 3,5 milhões de dólares em propinas em negociações
para a venda de aeronaves para a Força Aérea da República Dominicana. Os
executivos foram acusados dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro
em 2014.
Todos já sabiam disso por aqui, mas agora a força e a resiliência da
corrupção brasileira são expostas para o mundo. É constrangedor
Apesar
de terem sido condenados em 2018, quase dez anos depois, os executivos
apresentaram recurso atrás de recurso e o processo nunca transitou em
julgado, o que causou a prescrição dos crimes em 2022 para 8 entre 9 dos
condenados. Ou seja: apesar de terem sido condenados, 88% dos acusados
escaparam sem punição em razão do insano sistema prescricional
brasileiro - algo que já apontávamos quando propusemos as 10 medidas
contra a corrupção, que poderiam corrigir esse problema, mas foram destruídas pelo Congresso.
A
conclusão da OCDE espelha a estatística cruel de que 97% dos casos de
corrupção e de colarinho branco não são punidos no Brasil. No STF essa
realidade talvez seja até pior, afinal, em toda a Lava Jato, apenas dois
políticos dentre as dezenas daqueles que tinham foro privilegiado, os
ex-deputados Nelson Meurer e Aníbal Gomes, foram condenados pelo
tribunal. Enquanto isso, mais de 174 pessoas foram condenadas em
Curitiba nos esquemas que, todos sabem, eram comandados por caciques de
Brasília que seguem impunes.
O segundo ponto que
gostaria de destacar é que a OCDE atestou o que sempre dizemos: a
independência efetiva dos agentes da lei para combater a corrupção está
em cheque no Brasil. Por aqui, os corruptos buscam não só impunidade dos
crimes passados, mas retaliar os agentes da lei que os investigaram e
assegurar sua impunidade para os crimes futuros.
De fato, a OCDE apontou “sérias preocupações com um efeito inibidor (chilling effect)
decorrente da combinação entre a ampliação da Lei de Abuso de
Autoridade e recentes ações disciplinares - ou mesmo cíveis e criminais -
contra procuradores atuando em casos importantes de corrupção”.
Nesse
particular, a OCDE faz referência direta à decisão ilegal do TCU que me
condenou a devolver mais de 2,8 milhões de reais em razão dos custos
operacionais da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba: “Tanto a comissão
de investigação técnica quanto o Ministério Público junto ao TCU
concluíram que nenhuma irregularidade ocorreu. Apesar desses relatos, o
Plenário do TCU [ministros indicados politicamente] condenou todos os
três procuradores”.
Outro caso lembrado pela
OCDE foi a punição de procuradores da força-tarefa da Lava Jato do Rio
de Janeiro pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) em razão
da divulgação de uma denúncia contra políticos do MDB. Sem que nada de
grave tivesse ocorrido, procuradores com carreiras exemplares foram
submetidos a rigorosas punições por um órgão com forte ingerência
política.
Durante as visitas ao Brasil,
procuradores confirmaram aos examinadores da OCDE sua percepção de que
as punições foram uma forma de retaliação pelo trabalho contra a
corrupção. Representantes da sociedade civil também expressaram a mesma
preocupação com a necessidade de proteger a independência de
procuradores que atuam em grandes casos de corrupção de quaisquer
interferências.
O terceiro ponto que destacarei é o mais importante do relatório: a análise extremamente crítica da OCDE da esdrúxula decisão do ministro Dias Toffoli de anular as provas do acordo de leniência da Odebrecht,
as quais apontam a corrupção de centenas de políticos brasileiros. A
decisão foi vista com assombro e preocupação pela OCDE. Aliás, o
relatório da OCDE já estava pronto para publicação quando a decisão do
STF veio à tona e, diante de sua gravidade, os examinadores decidiram
reabrir o relatório.
Com efeito, a decisão de
Toffoli que anulou as provas do acordo da Odebrecht é o ponto central de
todo o relatório da OCDE e é mencionada diversas vezes ao longo do
texto. A decisão consta como preocupação e recomendação nº 1 dos
examinadores na lista de questões que serão acompanhadas com atenção
pela OCDE nos próximos anos.
Segundo o
relatório, a OCDE está preocupada com as consequências da decisão de
Toffoli, especialmente sobre os demais “acordos de leniência do Brasil
nas questões antissuborno, em particular em que extensão isso vai afetar
a habilidade do Brasil de prover e obter assistência mútua em casos de
suborno internacional”.
A preocupação da OCDE não
é para menos, já que o relatório elogia e destaca o trabalho realizado
pela operação Lava Jato como o momento de maior eficiência no combate à
corrupção do Brasil em vários anos, especialmente em relação ao caso
Odebrecht. A OCDE lembra que o acordo de leniência da Odebrecht, firmado
simultaneamente com Estados Unidos e Suíça, foi reconhecido na época
como “o maior caso de suborno internacional da história”.
A
Odebrecht admitiu ter pago mais de 788 milhões de dólares em subornos
para agentes públicos, políticos, partidos políticos e candidatos no
Brasil e outros 11 países, da América Latina à África. No Brasil, os
acordos firmados pela Odebrecht com o MPF, AGU e CGU renderam cerca de
2,5 bilhões de dólares aos cofres públicos, mais de 10 bilhões de
reais.
A decisão do ministro preocupou os
examinadores da OCDE não só porque pôs em xeque a efetividade e a
segurança jurídica dos acordos de leniência firmados no Brasil, em
especial os da Odebrecht, como também porque pode impedir que o Brasil coopere internacionalmente com outros países para investigar e punir a corrupção,
o que é uma obrigação dos países signatários da Convenção Antissuborno.
Isso porque Dias Toffoli tratou como se fossem ilegais as tratativas
diretas e contatos informais entre procuradores brasileiros e
autoridades estrangeiras, quando são legais.
Ao
contrário do que decidiu o ministro, a OCDE avaliou de maneira positiva
que “todas as autoridades competentes, incluindo CGU, o MPF e a PF,
promoveram laços e contatos informais, através do envolvimento com suas
contrapartes estrangeiras, bem como da participação em iniciativas
regionais ou outras redes de agentes da lei”. Para coroar, a OCDE também
afirmou que “desenvolver e manter esses laços e essa cooperação
informal é reconhecido como uma boa prática, crucial e
internacionalmente aceita”.
Assim, a OCDE põe o
último prego do caixão das críticas que se avolumaram na imprensa contra
a absurda decisão do ministro Dias Toffoli. Expõe como uma ferida
aberta o fato de que a decisão do ministro não teve como base a lei.
Mostra que a falsa preocupação do ministro com a regularidade da
cooperação internacional era apenas um pretexto para anular as provas,
já que a conduta da Lava Jato foi regular.
Decisões
como a de Toffoli causam efeitos reais na imagem, credibilidade e
capacidade de atuação do Brasil. Um exemplo disso é a informação trazida
no relatório de que os países-membros da OCDE relataram “maior
dificuldade para cooperações internacionais com o Brasil” após a Lava
Jato, além de excessiva demora na obtenção de autorizações judiciais
para compartilhamento de dados.
O que se
constata é que passamos de um padrão ouro de combate à corrupção,
aplicado durante a Lava Jato e que satisfazia os critérios da Convenção e
da própria OCDE, para um padrão lixo, um padrão impunidade. A decisão
de Toffoli é uma das decisões de Brasília responsáveis por essa mudança.
Passamos a ser um país mal-visto pela comunidade internacional e em que
não se pode mais confiar quando o tema é cooperação internacional.
Parabéns, Toffoli.
Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima Deltan Dallagnol, colunista - Gazeta do Povo - VOZES