'Todo ser humano tem o direito de ser sepultado', diz pai de menino de 10 anos cujo corpo ficou quatro dias na casa vazia da família até ser enterrado no quintal de um prédio vizinho; Mais de 22 mil palestinos foram mortos por ataques israelenses desde outubro, de acordo com o Ministério da Saúde do enclave
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O conflito transformou Gaza em um “cemitério para milhares de crianças”, de acordo com as Nações Unidas. Mohammad Abu Moussa, radiologista do Hospital al-Nasr, no sul de Gaza, disse que “a situação chegou ao ponto em que dizemos que sortudos são aqueles que têm alguém para (e os conseguem) enterrar quando morrem”.
Tradicionalmente, os palestinos honram seus mortos com cortejos fúnebres públicos de luto. Tendas são erguidas nas ruas por três dias para receber os que desejam prestar condolências. Mas o que a guerra enterrou foram os costumes. Muitos mortos são agora deixados em valas comuns, nos pátios de hospitais ou, como Kareem, em jardins de quintal, muitas vezes sem lápides, com nomes rabiscados em mortalhas brancas ou em sacos para cadáveres. As orações — quando feitas — são realizadas rapidamente, em hospitais ou fora dos necrotérios.
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Serviços não tinham capacidade para atender população de 2,3 milhões de habitantesNebal Farsakh, porta-voz do Crescente Vermelho Palestino, disse que a violência impossibilita as equipes de resgate de chegarem aos locais dos ataques para recuperar os corpos. Algumas famílias ficam trancadas dentro de suas casas durante dias com os cadáveres de seus entes queridos, disse ela. Autoridades de saúde de Gaza estimam que cerca de 7 mil pessoas seguem desaparecidas no enclave, a maioria presumivelmente morta devido à enorme destruição causada pelos ataques israelenses. Em algumas residências, as pessoas pintaram com spray os nomes daqueles que estariam enterrados sob os escombros.
Quase dois milhões de civis foram deslocados e fizeram perigosas caminhadas a pé até o sul da Faixa de Gaza — encontrando pelo caminho forças israelenses com armas apontadas em sua direção.
Sabawi conta que o pegou no colo, apesar de seu braço estar ferido, e a família correu para o apartamento de um vizinho. Kareem ainda respirava. Seu pai, em pânico, administrava a reanimação cardiopulmonar. Mas era tarde demais. Os vizinhos acolheram a família e trouxeram um cobertor para envolver o corpo do menino. Ele esperou quatro dias, temendo que eles pudessem ser mortos por um ataque aéreo ou por um soldado israelense se saíssem para enterrá-lo.
Quando decidiu voltar à casa, Sabawi e um vizinho fizeram a proclamação da fé muçulmana antes de sair com o corpo do filho do apartamento. No jardim atrás do edifício, cavaram rapidamente uma cova rasa e nela depositaram Kareem, cobrindo-o com terra. Voltaram correndo para dentro. No dia seguinte, voltou correndo para colocar mais terra sobre a sepultura. Na goiabeira, pendurou uma lápide improvisada e colocou um tijolo no topo. E contou que, sempre que havia oportunidade, descia para colocar mais terra, esperando que o local “virasse uma cova de verdade”.
Ahmed Alhattab, pai de quatro filhos, disse que um foguete atingiu seu prédio na noite de 7 de novembro na cidade de Gaza.
No mesmo período, disseram a ele ser improvável que seu filho sobrevivesse. Enquanto os parentes se preparavam para fugir, contou, ele tomou a dolorosa decisão de deixar Yahya para trás e levar seus outros filhos para o sul, onde esperava que estivessem mais seguros. Quatro dias depois, ele ouviu de um amigo que o menino havia morrido no hospital, onde foi enterrado, ao lado de outros pacientes.— O enterro foi temporário. Não sei o que aconteceu com o corpo dele — disse Alhattab.
Quando Fatima Alrayess, de 35 anos e que vive na Áustria, falou pela última vez com os dois irmãos mais novos, no dia 8 de novembro, eles disseram a ela que voltariam à casa da família. Muhammad, 31, e Muayid, 25, contaram que uma equipe da Defesa Civil estava a caminho do edifício de sete andares, que tinha sido derrubado por um ataque aéreo israelense três dias antes.
Quando as equipes de resgate começaram a vasculhar os escombros, outro ataque aéreo israelense ocorreu, matando Muayid e Muhammad, bem como vários socorristas, conta Alrayess. As consequências imediatas do ataque foram captadas em vídeo por um fotógrafo local. Ele lamentou que os irmãos tivessem seguido seus pais na morte. — Meus pais foram enterrados à tarde — disse Alrayess. — Muayid e Muhammad foram enterrados naquela noite no mesmo cemitério.
Cinco membros da família permanecem sob os escombros.
Em The New York Times — Gaza