Este país
padece de um mal muito sério. As pessoas aproveitam situações para impor suas
ideias ou iniciar campanhas sem uma análise razoável anterior. Ou falta
serenidade, ou orientação, ou boa-fé. Serenidade, para analisar os fatos.
Orientação, para saber que mesmo o adversário, aquele de quem discordamos em
tudo, é titular de direitos tão legítimos e amplos quanto aqueles que pensam
igual pensamos. Boa-fé, para não nos livrarmos de quem não gostamos utilizando
minigolpes contra os eleitores.
Falarei
de dois passos importantes para a democracia. Primeiro, que a voz do eleitor
não seja ignorada. Segundo, que ao fazer julgamentos (ou seja, aplicar
justiça), os erros, ofensas e crimes sejam julgados de forma igual tanto para
quem é do nosso partido, quanto do partido adversário. Esse é o ideal a ser
perseguido. Por exemplo, do jeito que vão as coisas, alguém, ao ler este
artigo, ao invés de refletir sobre seu conteúdo talvez vá dizer que estou
defendendo o Bolsonaro, ou até mesmo o estupro. Como professor, contudo, mesmo
com o risco de ser mal interpretado, tenho o dever de apontar dois problemas
reais: primeiro, dois pesos e duas medidas. Segundo, uma campanha que se
aproveita de meio fato para criar um grande golpe.
Estamos
acompanhando uma campanha dizendo que frases como a do Bolsonaro estimulam o
estupro. Não que eu concorde com o estilo do Deputado, ou com sua infeliz
frase, mas convenhamos: nenhum estuprador está consultando as declarações de um
parlamentar para decidir se delinque ou não. Analisar apenas o que Bolsonaro
falou é meio fato, e justiça só se faz olhando o fato inteiro.
As
informações às quais tive acesso dão conta que o Deputado Jair Bolsonaro disse
o seguinte: “Há poucos dias, tu me chamou de estuprador, no Salão Verde, e eu
falei que não ia estuprar você porque você não merece”. Eu particularmente acho
deplorável um cidadão, ainda mais um parlamentar, dizer isso para uma mulher.
No entanto, daí a querer sua cassação existe um grande espaço, e digo o motivo.
Se a Deputada chamou o Deputado de “estuprador”, há que se admitir que a
retorsão à ofensa seja igualmente deselegante. Estamos diante de uma ironia,
grosseira sim, mas não de uma apologia ao estupro. Indo além, vi no Facebook um
vídeo que apresenta “provas” de que o Dep. Bolsonaro “agrediu” a Deputada.
Vendo o vídeo, fica evidente que a Deputada foi em direção a ele e o mesmo tão
somente impediu a aproximação física da Deputada. Deploro a grosseria contra
qualquer pessoa, em especial uma mulher, mas daí a dizer que houve uma agressão
física existe um grande hiato.
Realmente
preferia que o Deputado não retrucasse da forma como fez, mas se foi objeto de
agressões verbais, não podemos julgar apenas as que proferiu e ignorar as que
recebeu anteriormente. Ao ser atacado verbalmente, poderia processar a
Deputada, mas parece que sabe que a maioria fala o que quer sem tanta censura.
Outro caminho, previsto na lei, é a retorsão da ofensa. Talvez um juiz, como
eu, pensasse em processos; um militar tende a atirar de volta. Aliás, no amor e
na guerra fala-se que “chumbo trocado não dói”. Ao menos, não deveria. No
Parlamento, idem. E se quase meio milhão de brasileiros quiseram alguém
com este estilo atuando no Congresso, podemos até criticar o gosto, mas temos
que aprender a lidar com isso deferindo direitos iguais para todos. Todos os
parlamentares, e todos os eleitores, e jornalistas, qualquer que seja o
partido.
Citarei
mais uma evidência de que estamos no país das duas medidas. Um Professor de
Filosofia da UFRJ, Paulo Ghiraldelli, disse para outra mulher, Rachel
Sheherazade, o seguinte: “Votos para 2014: que a Rachel Sherazedo (sic)
abrace, após ser estuprada, um tamanduá”. Isso não foi uma ironia, foi bem
mais e, mesmo assim, o repúdio foi ínfimo em comparação ao que está sendo
dirigido ao Deputado. Existem estupros diferentes?
Certamente que não. Isso
revela um drama atual do Brasil: dependendo de quem fala, e de quem é a vítima,
as reações são diferentes. Anoto que ao ler as demais postagens do professor,
não acreditei na (fraquíssima) versão de que foi hackeado. Foi feita apologia
direta de estupro direcionada a uma pessoa e não vimos a mesma repercussão, nem
a enxurrada de representações que vemos agora. Então, fazer votos de que alguém
seja estuprada, se a vítima for essa ou aquela, é menos grave?
Não
podemos ter um país onde as coisas valem não pelo seu conteúdo, mas pela
posição política de quem as realiza. Alguém não tem o direito de desrespeitar
outra pessoa por ser ela de direita ou de esquerda. O outro
problema são as tentativas de golpes ou minigolpes que infestam nosso
cotidiano. Neste passo, começo pelas propostas de impeachment e de
intervenção militar, claros desrespeitos ao eleitor. Stédile prometeu que
haveria guerra se Dilma não ganhasse, e parece que existem Stédiles também do
outro lado. Ora, qualquer medida fora dos cânones constitucionais é
inaceitável, seja do Stédile, seja de qualquer outro. Existem regras, vamos
segui-las.
Entre as
regras está o direito de parlamentares falarem praticamente tudo o que
quiserem. Há limites, mas não podem ser pequenos, nem fajutos, nem que valham
só para o outro lado. O Deputado Bolsonaro representa parcela considerável dos
eleitores, fala em nome de quem o elegeu. E não foram poucas pessoas. Daí, não
deveria ter o risco de ser cassado senão por um motivo direto, claro, e não de
uma interpretação (por sinal equivocada) onde ironia e grosseria em retorno à
ofensa sofrida são convenientemente chamadas de apologia ao crime. Querer se
livrar de alguém que ganhou as eleições, Dilma, sem seguir as regras é golpe.
Querer se livrar de alguém que incomoda por suas opiniões e pelo modo de
expressá-las, Bolsonaro, é minigolpe.
Enquanto
eleitor, sinto cheiro de virada de mesa: (1) quem perdeu a eleição não quer
seguir as regras (elas existem, até para o impeachment); (2) alguns
partidos, aproveitando-se de sua maioria na Casa, querem tirar um elemento
incômodo. Ambos os desejos, a despeito dos eleitores que os colocaram onde
estão. No caso de Dilma, é atropelar as regras do jogo que todos devem seguir.
No caso de Bolsonaro, é querer subtrair diversidade e representatividade de uma
Casa que tem padecido justamente pela falta de oposição e de pessoas com
opiniões que não estão à venda. Podem ser grosseiras, mas são opiniões firmes
em um lugar que padece de algumas ilhas de pusilanimidade. O Deputado em risco
de cassação por suas opiniões é alguém cujas opiniões e postura são claramente
conhecidas por quem votou nele. Querer tirar um parlamentar de oposição e
legitimamente eleito, e tão bem votado, é um desrespeito aos eleitores.
Eleitores que o escolheram apesar de todos os seus defeitos, já notórios bem antes
das últimas eleições. Quase meio milhão de cariocas quiseram colocar em
Brasília um desbocado autêntico. Ele pode até ter posturas polêmicas, mas
ninguém ouviu falar que leva dinheiro para votar, ou que tem parte no Petrolão.
Respeitemos o eleitor.
Aliás,
isso me lembra o grande erro da Comissão da Verdade, cujo relatório acabou de
ser entregue. Ao contrário do paradigma sul-africano, a nossa comissão não
analisou os crimes cometidos de lado a lado, apenas os dos militares. Mas e os
crimes dos terroristas? Estes podem ser esquecidos? A Comissão sul-africana era
da “verdade e reconciliação”. E tratou de todos os lados do conflito. A nossa,
ao tratar apenas dos militares, ao menos tirou o nome “reconciliação”, desde já
fazendo a devida confissão de sua parcialidade. Com parcialidade não há a
possibilidade de reconciliação. Dois pesos, duas medidas.
As regras
legais, de cortesia, de ironia, de retorsão às ofensas e de respeito às
autoridades devem valer igualmente para todos, sem distinção de raça, cor, orientação
religiosa, sexual ou política. A reação das autoridades e da imprensa também
deveria ser a mesma qualquer que fosse a vítima. Como disse um Senador já
falecido: ética é ser a favor do certo mesmo quando ele nos prejudica e contra
o errado mesmo quando ele nos favorece.
Enfim, o
problema maior deste país não é o Bolsonaro, como muita gente quer fazer crer.
Cito dois problemas maiores. Um, não querem respeitar a democracia nem as
regras do jogo. Parece que a opinião dos eleitores vale menos quando não
interessa a quem tem algum poder. O segundo, é que os mesmos atos ou fatos são
interpretados de forma diametralmente oposta a depender da simpatia ou
antipatia em relação a quem os pratica. No fundo, é um problema único: dois
pesos, duas medidas. Seja o do voto, seja o da opinião. Muita gente acha que
seu voto ou sua opinião valem mais do que a do outro. A do outro pode ser até
crime!
Ainda no
campo dos pesos e das medidas, estou cansado de ver pobres não poderem devolver
um quilo de arroz, ou um litro de leite, e irem para o presídio passar longo
tempo. Espero que isso não seja permitido a quem tem iates e helicópteros. Como
proponho na minha campanha “Cansei, quero um país diferente”, ou damos uma
anistia geral para todos os ladrões que confessarem seus crimes, ou não podemos
aceitar essa gentileza só para os ricos. Proponho três meses de prazo para
todos confessarem seus delitos e devolverem a pilhagem. Sejam pobres, sejam
ricos; seja o empreiteiro “coitadinho” que não quer que o Brasil pare (prefiro
que pare, para que saiam), seja o “guardinha” da esquina. Quem sabe os pequenos
corruptos desse país não queiram fazer sua autodelação premiada? Por que só
para os ricos?
Enfim,
não aceito que empreiteiros possam sair de fininho se os corruptos e os ladrões
de galinha não tiverem a mesma chance. Não aceito quererem tirar a Dilma sem
seguirem direitinho as regras do jogo. Não aceito tirarem o desbocado do
Deputado que não vende seus votos. Talvez eu venha a ser vítima da cultura que
critico: aquela onde não julgam mais as falas e os fatos, mas, apenas a pessoa
que fala ou os pratica. Como cidadão e professor, friso o problema real do
nosso país: dois pesos, duas medidas. Não vou discutir neste momento qual deva
ser o peso, ou a medida, mas friso que quando enfim os escolhermos, devem ser
os mesmos para todos: para os da direita e para os da esquerda, para os pobres
e para os ricos.
William
Douglas é Juiz Federal/RJ, professor universitário, autor. Considerado o maior
especialista em concursos pela Revista Veja,